“Veneno” reúne o que precisamos ver em uma produção audiovisual sobre pessoas trans e travestis

Desde que eu assisti “Veneno” frequentemente paro para pensar sobre a importância dessa minissérie e, se você assistir, muito provavelmente vai entender o porquê. Contada em 8 episódios “Veneno” estreou em 2020 por uma plataforma de streaming espanhola e depois foi distribuída pela HBO Max. Baseada na vida da travesti Cristina Ortiz, conhecida como La Veneno, que nos anos 90 alavancou a audiência de no mínimo dois programas de destaque da TV espanhola, sendo depois entrevistada inclusive em outros programas na América Latina. O roteiro é baseado no livro da jornalista e escritora Valeria Vegas ¡Digo! Ni puta ni santa. Las memorias de La Veneno”, publicado em 2016, sobre as memórias da Cristina.

Um dos pontos centrais dessa minissérie é como a mídia sensacionalista e transfóbica usou da imagem e vivência de uma travesti para atrair um grande público por no mínimo três anos e colocar pelo menos dois programas de TV entre os mais populares da década na Espanha.

Isso se repete até hoje inclusive em muitos programas de TV brasileiros, às vezes até de forma mascarada em falsas pautas militantes ou retratando as identidades trans e travestis de uma forma patológica. E eu fico pensando em quantas mulheres travestis já participaram ou ainda participam desses programas por pura necessidade financeira ou invisibilidade social.

Lembro de quando eu era adolescente e via a Patrícia Araújo nesses programas. E assim como a Cristina, a Patrícia não tomava para si o lugar de doente em que a cisnormatividade nesses programas insistem em nos colocar. E mesmo assim era muito desconfortável ver todas aquelas entrevistas cheias de perguntas invasivas e inconvenientes que colocavam aquelas mulheres em um lugar de exotificação e desafeto apenas por serem travestis. Na minissérie é mostrado inclusive como a produção desses programas apelaram de todas as formas possíveis, inclusive usando da relação de abandono do pai e da mãe da Cristina para obterem a audiência, simulando uma falsa reaproximação.

Mas o que chama mais a atenção é que “Veneno” não se resume a essa crítica à mídia de massa. A história aqui é marcada de representatividade. Valeria Vegas, que também é uma mulher trans, além de escrever o livro foi uma das roteiristas da minissérie. O livro levou cerca de uma década até ser finalizado e publicado e esse processo acabou aproximando essas duas mulheres. Valeria conta que ficou fascinada pela história da Cristina e que nesses anos em que a acompanhou e entrevistou acabou revendo muitas coisas sobre si mesma e foi nesse processo que ela passou pela transição de gênero. Valeria Vegas é interpretada pela atriz Lola Rodríguez, que também é uma mulher trans. E uma coisa curiosa é que Lola interpreta Valeria antes e depois da transição de gênero, então o que poderia ter sido um gatilho para a atriz acabou se tornando um ato de entrega.

Aqui não existe transfake. “Veneno” é uma história sobre travestis contada por travestis. Todas as atrizes do núcleo principal são mulheres trans e travestis e três delas interpretam La Veneno: Jedet Sánchez interpretou Cristina na primeira fase adulta. Jedet inclusive interrompeu sua hormonização durante as filmagens como forma de entender melhor os sentimentos de Cristina durante seu processo de transição. Daniela Santiago interpreta Cristina durante a fase mais conhecida de La Veneno. E Isabel Torres interpreta Cristina em sua última fase. Paca La Piraña, amiga de Cristina durante boa parte da sua vida é interpretada aqui por ela mesma. Inclusive esse é um ponto bem importante: atrizes travestis com mais de 50 anos como Paca e Isabel Torres atuando. E vale lembrar que “Veneno” contou com o trabalho de pessoas trans não só em cena, mas também em vários departamentos da produção.

“Veneno” aborda o contraste da vivência de travestis de gerações diferentes. A vida marginalizada de Cristina e como era ser uma travesti nos anos 90 em contraste com a vida de Valeria, que vive e entende a travestilidade dela nos dias de hoje, com o acolhimento da mãe e o acesso à educação. A minissérie mostra de uma forma muito bonita e sensível como essas travestilidades se encontram e como até hoje a maioria das mulheres trans e travestis constroem uma nas outras suas próprias famílias. A montagem é incrível e mistura a realidade do que Cristina viveu com as fantasias do que ela gostaria de ter vivido ou como ela gostaria que sua história fosse contada. E isso faz lembrar de uma cena que me tocou muito no penúltimo episódio, depois que a primeira edição do livro é impressa, onde Cristina pergunta para Valeria: “Es bonita mi vida, ¿no, Valeria?”. E então Valeria responde: “Muchísimo!”.

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