A série “The 100” e a “síndrome da lésbica morta” nas artes

Esse texto contém spoilers para a série “The 100”

A série americana “The 100”, baseada no livro homônimo de Kass Morgan, teve 7 temporadas de duração e encerrou-se no final de 2020. Focada no público jovem-adulto, apresentava um mundo pós-apocalíptico e possuía um pequeno grupo de fãs fixos.

Esse número começou a fidelizar quando, ao final da segunda temporada (em março de 2015), iniciou-se um possível romance entre Clarke (a protagonista) e Lexa (até então, a antagonista). Pessoas do mundo inteiro (com ênfase em jovens LBT) ficaram sabendo desta possibilidade e logo se viram interessados pelo futuro do casal.

O criador da série, Jason Rothenberg, e seus principais roteiristas pareciam gostar dessa atenção. No hiato entre as temporadas, quando os fãs aguardavam mais notícias sobre o possível casal, o showrunner chegou a indicar que o ship (termo casual para relationship – relacionamento) era digno[1] . Também chamou fãs a comparecerem às filmagens em locais públicos da série, feitas na cidade canadense de Vancouver – que incluíam ambas as atrizes do casal tão shippado. As peripécias da equipe não pararam aí, incluindo até acessar um fórum online de fãs lésbicas para falar da série.

Começa a ser exibida a terceira temporada, e de fato Lexa retorna. As duas personagens ensaiam um romance, com cenas muito comentadas nas mídias sociais, até que finalmente se beijam e tem uma cena de sexo (implícito). Infelizmente, as fãs não conseguem comemorar por muito tempo, já que na cena seguinte Lexa toma um tiro e morre.

Aqui não entrarei no mérito desta morte ser necessária ou fazer sentido ao roteiro – no caso, não fazia. Também não vou debater se ocorreu porque a atriz de Lexa precisava sair para ir para outra série – outras maneiras de alcançar esse mesmo objetivo existem e são bem menos letais.

Não, o foco é demonstrar quão ardilosa e mal planejada foi essa morte, e o que ela representou para diversas jovens fãs ao redor do mundo. Lexa foi apenas um triste exemplo de um clichê artístico (ou trope, em inglês) chamado Bury your Gays (“enterre seus gays”, em tradução) – mais especificamente, do Dead Lesbian Syndrome (“síndrome da lésbica morta”).

Este “recurso” audiovisual (se é que deveria ter este nome) existe há muitos anos e foi usado de muitas formas. No início de Hollywood, personagens LGBTQIA+ eram mortos para indicar, indiretamente, quão “errada” era sua existência. A literatura não era muito melhor – apesar de livros pulp lésbicos terem ficado populares nos anos 50 e 60 nos EUA, o próprio Congresso do país quis bani-los: levando assim a histórias trágicas com morte ao final[2].

Não é difícil demonstrar quão danosa é esse tipo de imagem para a representatividade LGBTQIA+. E, infelizmente, não é difícil notar quantos exemplos ainda existem desse tipo clichê: após a morte de Lexa, vários sites compilaram listas de personagens que foram mortas nesse sentido[3]

Se há um lado “bom” no falecimento de Lexa e de tantas outras personagens naquele início de 2016, foi que houve uma resposta grande da imprensa internacional e dos fãs, que inclusive se uniram para fazer doações de recursos para caridade[4]. Também teve como resultado um evento especializado para fãs de conteúdo LBT (o Clexacon, com “Clexa” sendo o nome que as fãs usavam para o casal).

Mas, infelizmente, o panorama geral é de que a representatividade LGBTQIA+ deve ser pensada e cuidadosa, para que não venha levianamente e caia em clichês prejudiciais como o Bury your Gays e a Dead Lesbian Syndrome. Importante lembrar jovens fãs de que nossas histórias são válidas, e merecem ser contadas da maneira mais genuína possível.

 

[1] https://www.autostraddle.com/autostraddles-ultimate-infographic-guide-to-dead-lesbian-tv-characters-332920/

[2] https://www.polygon.com/2016/3/8/11179844/the-100-cw-lexa-trevor-project

[3] https://www.autostraddle.com/autostraddles-ultimate-infographic-guide-to-dead-lesbian-tv-characters-332920/

[4] https://www.polygon.com/2016/3/8/11179844/the-100-cw-lexa-trevor-project