Carne doce de caju

[qodef_dropcaps type=”normal” color=”#000″ background_color=””]Á[/qodef_dropcaps]s quatro já se põe em pé, faz o café para a família na cozinha simples da casa baixa com telhado de eternit. Um armário, fogão, uma geladeira, a pia de alumínio e uma mesa com quatro cadeiras: ela, seu marido, dois filhos. Em boa parte do tempo está satisfeita com seu destino, é uma mulher independente, trabalha, tem sua casa, criou bem seus filhos. Mas ás vezes a nostalgia a encontra, entre uma cena e outra, recorda de sua mãe, sempre acompanhada por uma das vizinhas ou das filhas na cozinha, sempre próxima das irmãs na terra onde havia enterrado o umbigo dela. O umbigo de Maria também havia sido enterrado ali, a 8 horas de viagem da capital, bem nas entranhas da Bahia. Café passado, e a mesa posta, banho tomado, ás 5:45 acorda os filhos, pega seu isopor, sua banquinha, os litros de suco, os salgados assados e organizados milimetricamente de acordo com os sabores, ajeita seu carrinho e sai de casa.

Horário ainda sem trânsito, o ônibus corta a cidade baixa em direção ao Canela. Maria vai acompanhada das balconistas de padaria e lanchonetes, vendedores de lanche iguais a ela, são sempre os primeiros a chegar. Monta sua banquinha, só sai quando vender a última das peças de salgado. O peso de seu carrinho de ferro é sustento de seu mundo e quando ele volta vazio e bem mais leve é um alívio. Está há 30 anos no mesmo ponto em frente ao Hospital Universitário Federal da Bahia, parece que muita coisa mudou, mas não tanto assim, ela continua no mesmo lugar.

Esses dias sua cabeça está meio ruim, como a mesma classifica. Distraída, o cheiro do suco do caju entre uma venda e outra a transporta para sua juventude. Criada em um sítio rodeado de cajueiros, as árvores eram seus esconderijos infantis, sempre que acabavam suas tarefas domésticas acompanhada de Sebastiana, sua vizinha e amiga, escalava os galhos mais altos, enchiam a barriga de caju até passar mal, a mãe só lhe dizia “bem feito”. A única filha de seis irmãos mais velhos, Maria e Sebastiana iam juntas à escola, se encontravam todos os finais de tarde e sentiam que eram as únicas a se compreenderem nesse mundo e era um sentimento bom, daqueles que dá para sentir no corpo, nos ossos.

Em sua adolescência se grudaram mais ainda, a mulher recorda do primeiro beijo que trocaram, queriam saber como era um beijo na boca e nada mais comum que trocar esse afeto com aquela que amava até o peito arder, depois desse dia os cajueiros eram testemunhas de outros tipos de jogos todo final de tarde. Comiam caju saboreando a boca uma da outra, Sebastiana gostava de beijar o pescoço, os lábios e o colo de Maria molhados pelo sumo da fruta, depois se sentava encostada no tronco da árvore e Maria sentava em seu colo, começava então um movimento de ninar uma a outra, balançando suavemente Maria para frente e para trás.

Foram separadas drasticamente, sua mãe lhe dizia sempre que Sebastiana tinha modos de macho, na infância era até aceitável elas correndo por aí sem blusa, mas agora? Agora Maria já precisava pensar em arranjar um marido. Maria sentia culpa, pois sabia que não podia contar a ninguém o que Sebastiana a fazia sentir. Foi o que aconteceu, aos 19 anos Maria se juntou com Josinaldo que também conhecera desde a infância, juntos foram para Salvador, procurar outra vida, nunca mais retornou, sua mãe já falecera há muitos anos e os irmãos nunca lhe procuraram a não ser para favores quando iam a capital. Sebastiana permaneceu, permaneceu também nos olhos de Maria, todo final de tarde o ônibus ao descer a Avenida Contorno faz um doce balanço ao por do sol, a cansada senhora, torna-se novamente menina, correndo entre os cajueiros, lembra então de sua amada que a pegava no colo e a ninava, dorme.

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