É exaustivo se relacionar com mulheres culturalmente heterossexuais

Feel Good, da Netflix, é um soco no estômago. Poderia dizer um bom soco no estômago? Poderia, mas claro que isso vai depender das coisas pelas quais você, mulher ou não-binarie que se relaciona com mulheres, já passou na vida. Quantos “desafios”, traumas ou violências – e que a gente às vezes não coloca nesse lugar – você já enfrentou.

Mae Martin, roteirista e protagonista da série, atravessa muitas coisas durante as duas temporadas. Transição de gênero, resgate, elaboração e superação dos impactos de um abuso sofrido, dependência química, relações familiares complexas. E, claro, uma história de amor que não apenas engatilha muitas coisas, mas também alimenta e nutre os desejos de cura, de curar-se. 

Mae Martin

A série é, do começo ao fim, aquela sensação incômoda da expansão, sabe? Quando sua cabeça conecta alguns pontos e você tem um momento foda de elucidação de questões muito íntimas; além, é claro, do bom sentimento em que a gente reconhece que a gente é muito foda, porque a gente passa por tanta coisa nesse mundo cisheteronormativo que, estar vivona, vivendo, acertando e errando, se permitindo, amando e sentindo as coisas, é apenas para quem tem muita vontade mesmo – e esperança.

Uma coisa me chamou muita atenção em Feel Good, especialmente na primeira temporada, o tensionamento da relação de Mae com sua namorada George, no que diz respeito às questões de gênero e erotismo que se colocam. Tem a ver com sexo? Claro, mas não só, especialmente se você pensar que o sexo não se restringe à cama, às quatro paredes de um quarto. Tudo sobre sexo é, sobretudo, o que acontece antes e depois dele.

Mas, vamos lá. 

Se tem uma coisa que eu tenho ~ quase ~ certeza é que toda mulher e pessoa não binária que se relacionam com mulheres já tiveram que lidar, seja para dentro, quando a gente cala, ou para fora, quando a gente fala, com constrangimentos de quando estamos ao lado de uma mulher “culturalmente heterossexual”. 

Em um dos episódios da série, Mae faz uma esquete de “humor” e comenta sobre algo muito conhecido de muitas de nós: a exaustão de estar com uma pessoa que gosta de mulheres, mas a todo momento, admira homens, acha fodas e charmosos os corpos dos homens, as vozes dos homens, a arte que homens fazem. E claro que aqui falo PRINCIPALMENTE, talvez exclusivamente, dos homens cis. 

Sabe, aquela mulher que até gosta de ler e consumir o trabalho de mulheres, de se sentir fortalecida por elas, mas nunca sonhou com uma, nunca comentou contigo “nossa, que mulher gata” (no sentido do desejo de estar com esta mulher, não de ser esta mulher, ok?). Mulheres que acham homens e mulheres interessantes, claro. Mas reparar e exaltar a beleza, o tesão, o intelecto, o talento dos caras é muito mais natural e orgânico? Pois bem. Estas mulheres.

Uma vez, em uma de minhas relações, toda hora tinha: “como você não conhece tal cara?” Eu sei lá! Já faz tanto tempo que quase nunca me interesso pelo que homens produzem. Não conheço. E se conhecer, pode ser que não me interesse, porque em algum momento vai me atravessar, violentar e, certamente, não fala sobre o que eu sou e sobre o que eu vivo. 

Neste sentido, eu fico sempre me perguntando: será que gosta de mulher mesmo? De que jeito? Gosta como? Quer o que delas? E quer onde? De que tamanho? Com que profundidade?

Porque quando a gente gosta de mulher, no sentido afetivo-erótico-sexual da coisa, que é sobre o que este texto fala, a gente gosta de falar sobre mulher, respirar mulher, desejar mulher, admirar mulher. A gente gosta não só de gostar de mulher, mas viver como quem gosta de mulher, parecer gostar de mulher, de mostrar pro mundo que a gente gosta de mulher, que todo mundo saiba sim que a gente gosta de mulher (recorte aqui para mulheres que já saíram do armário, tá certo?).

Me pergunto também como será que se construiu o desejo por mulheres destas mulheres que não transcendem, não transmutam da cultura heterossexual para algo melhor (sim, eu tenho pavor da heterossexualidade compulsória). Claro que ele pode despertar de muitas formas, mas é importante demais entender isso, de onde vem, profundamente. Penso que só daí é que elaboraremos as melhores formas de seguir na construção destes lugares subjetivos, mas também muito objetivos, de uma forma saudável, gostosa e honesta.

Costumo dizer que “todo mundo é hétero até deixar de ser” e, por isso mesmo, é importante dizer aqui que este comportamento pode acontecer com todas nós. Não estamos livres de ser “culturalmente heterossexuais” sendo lésbicas, bi ou pan, viu?! E este comportamento é algo muito violento que podemos estar vivenciando sem nem perceber. Fazendo e/ou permitindo que façam com a gente.

Meu convite é para que você se observe e se cuide demais neste sentido. Tem muito o que nós mesmas precisamos aprender para sermos melhores com a gente mesma, sabendo colocar limites em todos os lugares necessários. E pra gente ser melhor com as mulheres com quem nos relacionamos também. 

Em muitos lugares eu já disse que ser mulher cansa. Ser mulher, lésbica, que ama mulheres e estar a todo tempo não escutando, das próprias mulheres, o quanto mulheres são maravilhosas e inteligentes e talentosas e tesudas e desejáveis, exaure. Às vezes eu fico muito cansada mesmo. E você? Já se sentiu dessa forma? Conta aí nos comentários. Vamos falar sobre isso?

Sobre Feel Good, como otimista que sou, te digo. Assistir vai dar ruim, porque pega, mas depois, vai dar bom. Então, só vai. 

Sapatão por amor e convicção, casada, mãe de Amoras.

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