por Helô D'Angelo e Nathalia Parra para Revista Cult
A Parada LGBT de São Paulo, que acontece anualmente há 21 anos na avenida Paulista, é a maior do mundo: na edição deste ano, que aconteceu no último domingo (18), a organização contou três milhões de participantes. O evento celebra a diversidade e o orgulho LGBT, mas não são raros os relatos de violência contra mulheres lésbicas e bissexuais que participam da Parada.
A reportagem da CULT esteve na Paulista e presenciou cenas de casais lésbicos sendo ridicularizados enquanto se beijavam, meninas sendo coagidas a beijar rapazes “de brincadeira” e muitos grupos de homens tocando, sem permissão, corpos de mulheres. “Um cara impediu a minha passagem para me dar um beijo à força. Não importava o fato de eu estar acompanhada – ele tentou beijar a minha namorada também”, relata a jornalista Aline Germano*, 24.
A estudante Bia Gaher, 20, afirma ter gritado com um casal de homens que passou a mão no corpo de uma de suas amigas e “quase acabou apanhando” de um deles. A jornalista Isabella Marinelli, 22, diz que socorreu um casal de lésbicas atacado por um homem com uma garrafa de vidro: “Ela estava com um machucado enorme na cabeça e alguns cacos de vidro no nariz”, afirma.
Em outro momento, próximo à livraria Martins Fontes, um homem teria abordado um dos amigos da cantora Mariana Gonçalves*, 20, querendo beijá-lo. “Após algum tempo de conversa, percebemos que ele estava bem alterado e pedimos para que ele fosse embora”, lembra. Ao sair, porém, o homem tentou dar um soco no amigo, segundo Mariana, que reagiu: “Foi aí que ele começou a me bater. Ele me socou várias vezes no rosto, no pescoço, no peito e nas costas”.
A artista Beliza Buzollo, 25, afirma que sofreu uma forma diferente de agressão. Ela conta que estava beijando alguém durante o evento quando percebeu que era filmada por um rapaz acompanhado, segundo ela, do namorado. “Fomos contestar e ele argumentou que estava em seu direito e que era a pessoa mais libertária da Parada”, lembra. Quando Buzollo pediu que o vídeo fosse apagado, um deles teria ameaçado “ficar violento”.
Além do episódio do vídeo, ela lembra de outra situação, envolvendo homens heterossexuais: “Eles abordavam o nosso grupo de maneira invasiva, dizendo que estava tudo bem, pois ‘eram lésbicos também’”. O estudante e militante gay Marcos Mortara, 23, afirma ter visto muitos homens heterossexuais “infiltrados” na festa, tentando ficar com mulheres e ignorando completamente o fato de que muitas ali eram lésbicas. A estudante Fernanda Nery, 21, também afirma ter passado por isso: “Uns três ou quatro caras enormes me puxaram pelo braço e pela roupa. Eu me desvencilhei e reclamei, eles começaram a rir da minha cara”.
Os relatos são muitos, e variam entre agressões físicas e verbais, abuso sexual, exposição e lesbofobia. “A presença maciça é de homens, então a misoginia é presente”, diz a ativista lésbica e feminista Naracha Domingues, que também participou da Parada. “Um evento que junta três milhões de pessoas poderia usar esse potencial para muito mais que isso. Todo mundo tem o direito de se manifestar e de se divertir”, reflete Natalia Pinheiro, militante lésbica e feminista.
Essa também é a opinião da Associação da Parada do Orgulho LGBT, organização que coordena o evento desde a sua criação, em 1997: “É triste ouvir que, em um evento onde o amor deveria nos conectar, as pessoas sofrem preconceito e agressões. É um grande paradoxo e realmente precisamos falar disso”, diz Nelson Matias Pereira, um dos sócios fundadores da APOLGBT.
Pedro Rhavel Teixeira, mestre em filosofia contemporânea, estudioso de gênero e militante gay, tem uma visão semelhante. A explicação do comportamento misógino de certos grupos dentro do meio LGBT, em sua opinião, tem a ver com a forma como os homens são criados dentro de uma sociedade patriarcal – para serem dominadores e liderarem as instituições mais básicas da sociedade.
“Espera-se que o homem seja sempre o dominante. Quando ele se assume gay, renega o destino que lhe foi imposto, mas ainda carrega a criação e a socialização machistas”, afirma. “Mesmo o homem de melhor boa vontade não está isento de cometer atos machistas em maior ou menor grau”.
Nelson Matias Pereira, da APOLGBT, completa: “Temos uma sociedade que educa pelo preconceito. A bancada evangélica não permite que se discuta gênero, machismo e educação sexual nas escolas, e isso só fomenta um fato importante: homens gays reproduzem o machismo”.
Para ele, a violência sofrida por mulheres também no meio LGBT é reflexo do machismo, “e não algo exclusivo dentro da militância ou da Parada”. A militante lésbica Natalia Pinheiro concorda: “Dizer que a misoginia acontece na Parada muito mais que em outro espaço é fomentar racismo e violência contra a população mais vulnerável da cidade de São Paulo”.
Caminhada lésbica e bissexual
Por acreditarem que o evento poderia não ser um espaço “totalmente seguro” para as mulheres, um grupo de militantes passou a organizar, em 2002, a Caminhada Lésbica e Bissexual, que acontece sempre um dia antes da Parada LGBT. A organização é horizontal, pensada quase sempre em espaços periféricos, sem investimento de grandes empresas ou ajuda do governo.
Neste ano, cerca de mil pessoas se reuniram no sábado (17), segundo a organização (menos de um décimo das pessoas que se concentraram na avenida Paulista). “A Caminhada é invisibilizada porque não tem glamour: são mulheres exigindo o direito que todos deveriam ter ao respeito, e gritando às pessoas suas demandas políticas e sociais”, opina Naracha Domingues, que já participou da organização do evento e costuma frequentá-lo todo ano.
Natalia Pinheiro, que foi da organização do evento até o ano passado e agora segue como apoiadora, acredita que outros caminhos para diminuir a misoginia e a lesbofobia dentro do movimento LGBT são a educação e a sensibilização dos homens gays sobre a realidade daquilo que “suas companheiras de luta sofrem por serem mulheres”. Pedro Rhavel Teixeira concorda: “Os homens gays deveriam entender que boa parte, senão o todo do que sofrem, é um correlato da misoginia”.
Nelson Pereira, da organização da Parada LGBT, considera o evento organizado pelas mulheres lésbicas legítimo, já que algumas de suas demandas são específicas, mas ressalta também que a Parada LGBT está pronta para ouvi-las e incorporá-las: “O evento está lá, é aberto, cabe às pessoas se empoderarem ou não”. Ele diz que a organização da Parada pretende propor soluções práticas para combater casos de assédio e violência, como “apitaços” e grupos de apoio às mulheres. “Há muito tempo a Parada deixou de ser exclusivamente frequentada pela população LGBT. Hoje, ela atrai inclusive aqueles que nos oprimem”, afirma.
* Alguns nomes foram alterados com a intenção de preservar a identidade das fontes
Fonte: Revista Cult
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