Pelo fim das barreiras de gênero

O que você faria se o seu filho pedisse uma boneca de Natal? Ou se a sua filha quisesse uma festa do homem-aranha? Afinal, como os pais (e os educadores) devem agir para não reproduzir estereótipos de gênero e criar meninos e meninas mais tolerantes e felizes?

Por Texto Naíma Saleh – Reportagem Adriana Negreiros e Neide Oliveira – Edição Ana Paula Pontes para Crescer.

Imagine a cena: uma garota, entretida com um quebra-cabeça no corredor de uma loja de brinquedos, é abordada pela atendente: “Linda, esse é de menino! Os de menina estão do outro lado”. Para a surpresa da vendedora, a resposta de bate-pronto foi: “Não existe isso. Eu escolho o que achar mais legal”.

O caso é real. A garota é Mariana, 6 anos, filha da advogada Renata Louro, 39, que vibrou de orgulho ao testemunhar a atitude da caçula. Na casa de Renata, que também é mãe de André, 8, não existe rosa para ela e azul para ele, ou boneca para ela e carrinho para ele. “Aqui não tem essa de ‘coisa de menina e de menino’”, diz. Mariana não é a única a questionar tão cedo os limites impostos por seu gênero. O vídeo da norte-americana Riley, uma garota que não passa de 4 anos e critica com vivacidade o fato de os brinquedos de princesas serem feitos para elas, e os de super-heróis para eles, vira e mexe volta a explodir nas redes sociais – o original já acumulou mais de 5 milhões de visualizações desde que foi postado, em 2011. O pequeno Caiden, 3, que vive nos Estados Unidos, também faz sucesso na internet por causa da fantasia que escolheu usar no Halloween: o vestido azul e brilhante da princesa Elsa, de Frozen – Uma Aventura Congelante, sua personagem favorita. Enquanto isso, aqui no Brasil, Julia, 3, escolheu Hulk, o herói verde da Marvel, como tema de sua festa de aniversário – e até vestiu-se como tal.

“Não queremos que seu sexo seja impedimento para nada que ela desejar ser. Julia pode fazer suas próprias escolhas e eu e o pai dela a apoiaremos sempre”, declarou a mãe, Yuska Garcia. Em Minas Gerais, Gracy Izaú, mãe de dois meninos, postou uma foto do primogênito lavando a louça e explicou: “Meu filho de 13 anos me disse que lavar louça é coisa de mulher, e que homem não tem obrigação de fazer serviços domésticos. Sendo assim, a partir de hoje, ele será responsável por lavar a louça todos os dias. E, como estou inspirada, o mais novo [8 anos] também ganhou sua tarefinha e vai tirar a mesa em todas as refeições”. O post viralizou, foi compartilhado mais de 10 mil vezes e ganhou sites e programas de TV, que embarcaram nessa discussão.

Todas essas situações reais ilustram como os questionamentos a respeito dos papéis de gênero têm se tornado mais frequentes. E, em muitos casos, partem das próprias crianças e jovens. No Rio de Janeiro, o Colégio Pedro II, um dos mais tradicionais, ganhou destaque nas mídias após abolir a distinção entre uniforme masculino e feminino. Tudo começou no fim de 2014, quando um aluno, que estava de saia, foi obrigado a se desfazer da peça e seus colegas, em solidariedade, organizaram um “saiaço”. Em setembro deste ano, a escola aboliu definitivamente a distinção de gêneros para o uso do uniforme no ensino médio – tanto meninos quanto meninas agora podem usar saia para frequentar as aulas. “O colégio está possibilitando que os estudantes usem o tipo de uniforme de acordo com sua identidade de gênero. Isso é inclusão”, disse, em nota, a reitoria da instituição.

O que acontece dentro da escola e das próprias famílias é um reflexo das mudanças da sociedade. Hoje, as mulheres usam calça, dirigem e votam. Homens cozinham, se preocupam com a aparência e estão cada vez mais envolvidos nos cuidados com os filhos. Nesse contexto, não dá para esperar que as barreiras que definem o que é ser homem e o que é ser mulher permaneçam intactas. “Por mais que haja um esforço constante da sociedade em estabelecer o que é feminino e masculino, na realidade há situações em que as fronteiras entre ser homem e ser mulher não estão definidas”, afirma a antropóloga Michele Escoura, coautora do livro Diferentes, Não Desiguais: A Questão de Gênero na Escola (Ed. Reviravolta).

Especialmente no caso das crianças, que estão em pleno processo de formação de identidade, o conflito entre o que (ainda) é socialmente esperado de seu comportamento de acordo com o sexo e a manifestação de seus desejos e preferências traz a discussão à tona. Afinal, até que ponto o sexo com o qual nascemos influencia nosso comportamento e gostos? O que é provido pela biologia e o que faz parte da personalidade de cada um? E mais importante: como agir quando as preferências do seu filho não correspondem às expectativas sociais? Não há como ignorar a questão do gênero quando se fala em educação. Até porque, ele começa a ter um papel definitivo na formação da identidade do seu filho mesmo antes de ele nascer.

 

IDENTIDADE PRIMÁRIA

Durante a gravidez, mesmo sem saber qual é a carinha do seu bebê, de descobrir com quem ele se parece e até de escolher o nome, a pista inicial sobre aquele novo ser só oferece duas alternativas: menino ou menina. A descoberta do sexo, que costuma acontecer a partir da 16a semana de gestação com a realização do ultrassom morfológico, se torna a primeira referência sobre aquela criança. “Costumamos dizer que o gênero é uma forma primária de dar identidade às pessoas”, diz a professora Claudia Vianna, da Faculdade de Educação da USP. É a partir dessa informação que será escolhido o nome, a cor do enxoval, o tom das paredes do quarto. Mas não só: diversas intencionalidades começam a ser atribuídas ao bebê ainda na barriga. Se é menino, “chuta como o pai!” Se é menina, “vai roubar a beleza da mãe”.

Foi para não criar esse tipo de expectativa que, durante as três gestações, a engenheira química Cintia Collis Bernardi, 41 anos, optou  por não saber o sexo dos bebês e montou quartos e enxovais com cores e motivos neutros. “Para mim, tanto fazia ser menino ou menina. Essa nunca foi uma questão”, conta a mãe de Cauã, 12, Eron, 7, e Noah, 1. Já a professora de espanhol Vera Regina Gherardini, 39, sempre sonhou ter uma menina. Mesmo assim, quando o ultrassom confirmou que Maria Isabel estava a caminho, ela não quis comprar tudo em tons de rosa. Escolheu um quarto verde-água, com motivos de animais. Dos parentes e amigos, contudo, ganhou muitas peças tipicamente femininas. “E tudo bem”, diz Vera. “As fadinhas podem conviver bem com os sapos”, brinca.

O problema não é conhecer ou desconhecer o sexo do bebê antes de nascer, mas, sim, depositar na criança anseios e modelos de comportamento correspondentes ao gênero desde cedo. “Na nossa sociedade, esse jeito de imprimir nas crianças o que significa ser homem e mulher ainda é binário. É como se pudéssemos dividir os seres humanos em dois grupos pelo sexo que o corpo carrega”, diz Claudia.

O perigo dessa separação é aprisionar o seu filho em um dos lados. Não é por ser menino que ele vai ser competitivo, viril e gostar de jogar bola. Nem por ser menina que ela vai ser delicada, gostar de rosa ou brincar de casinha. As características que identificam os gêneros são construídas socialmente: dependem da cultura e dos valores de cada época e de cada lugar. No Egito Antigo, tanto homens quanto mulheres podiam ter os cabelos raspados ou compridos e ambos usavam maquiagem – incluindo os faraós. Nos séculos 16 e 17,  homens europeus usavam perucas como sinal de prestígio e elegância. E até hoje, na Escócia, eles usam saia, o kilt, embora há apenas 50 anos fosse incomum ver mulheres de calça.

Justamente por Vera não ter criado parâmetros para a filha, hoje, com 8 anos, Maria Isabel circula com desenvoltura do rosa ao azul. Interessada em futebol e carros, gosta de chuteiras e escolhe peças de roupa na seção masculina das lojas, mais confortáveis para brincar. Porém, também gosta de vestidos de princesa e esmaltes. “Se quiser jogar futebol, de chuteira, usando saia de frufru, está valendo. Bebel tem liberdade para percorrer os dois mundos”, conta a mãe.

 

DESCOBRINDO AS DIFERENÇAS

Entre 2 e 3 anos, as crianças começam a observar mais atentamente as características que diferem cada pessoa: um tem cabelo liso, o outro, cacheado. Um tem a pele clara, o outro, escura. É também durante essa fase que elas normalmente começam o treinamento para largar as fraldas. E as idas ao banheiro podem trazer novos questionamentos. “Por que ele faz xixi de pé?”, “Por que ela faz sentada?” É muito comum que elas comecem a ter pistas do que, biologicamente, as diferencia. “Ainda é uma relação muito corpórea, que não tem a ver com percepções sobre os papéis de gênero”, diz a pedagoga e psicóloga Regina Ingrid Bragagnolo, do Núcleo de Desenvolvimento Infantil da Universidade Federal de Santa Catarina.

Mas as pressões sociais já estão a todo vapor. Quando a assistente administrativa Ludmila Akemi, 33, comprou um conjunto de panelinhas de presente de Natal para o filho Julio, 3, que usava blocos de montar para “cozinhar” para a mãe, foi repreendida por familiares e amigos. Para eles, Ludmila deveria redobrar a atenção quanto aos referenciais de masculinidade do menino, uma vez que ela é divorciada. “Ainda fragilizada com a separação, fiquei muito machucada com os comentários”, lembra.

Um dos grandes desafios no rompimento desses paradigmas de gênero é desconstruir a homofobia que os estereótipos carregam. “Na construção da masculinidade do menino está embutida a ideia de que, se ele fizer qualquer coisa do âmbito feminino, sua orientação sexual vai mudar”, diz a professora Claudia.  O escritor Andrew Solomon relata em um de seus grandes sucessos, o livro Longe da Árvore (Ed. Companhia das Letras), um episódio que marcou sua infância. Aos 7 anos, ele foi com a mãe e o irmão a uma loja de sapatos e, na saída, o vendedor ofereceu um balão para eles. O irmão escolheu o vermelho e Andrew, o rosa. O que o levou a ser “corrigido” pela mãe. “O fato de que a minha cor favorita agora é azul, mas eu ainda sou gay, é evidência tanto da influência da minha mãe como de seus limites”, escreve.

Essas pequenas repressões do dia a dia não se limitam às cores. “Esse menino vai ser um garanhão.”  “Comporte-se como uma mocinha.” Ao ouvirem frases assim (o que, inclusive, motivou uma campanha da CRESCER chamada #começacedo), significados de gênero vão se impregnando à construção da identidade da criança. Segundo a antropóloga Michele Escoura,  a frase “isso não é coisa de princesa”, dita para muitas meninas, cria um ideal de feminilidade, como se as garotas recatadas, dóceis e adeptas de longos vestidos brilhantes fossem melhores do que outras, que são mais sapecas e agitadas.

A polêmica da Escola de Princesas, que surgiu em Minas Gerais, e chegou a São Paulo, trouxe um debate fervoroso nas redes sociais. A escola, que ensina regras de etiqueta, culinária, costura, maquiagem, entre outras atividades, deixou pais e mães divididos. Alguns acreditam que esses atributos são importantes para o futuro das filhas, enquanto outros argumentam que os meninos devem ser igualmente educados: “Sou mãe e imagino que meus filhos devem ter a mesma base. Existe a aptidão das meninas em determinadas coisas, e o mesmo ocorre com os meninos, mas não deveriam ser determinantes para a educação deles”, escreveu Hellen Silva no Facebook da CRESCER. Segundo a pedagoga Regina, todas essas narrativas “reiteram os lugares e papéis que devem ocupar a partir de sua definição social”. Com isso, o desenvolvimento e o próprio potencial das crianças fica limitado, antes de se conhecerem e formarem sua identidade. Além disso, as definições já carregam em si certo desequilíbrio. “Na maioria avassaladora dos casos, os adjetivos associados à feminilidade são inferiores aos masculinos”, diz Claudia Vianna. Vale lembrar que, por volta dos 8 anos, essas noções de gênero já estão cristalizadas e a criança tem noção do lugar que, socialmente, se espera que ela ocupe. Por isso, para a psicóloga Gabriela Malzyner, mestre em Psicologia pela PUC-SP, a chave para respeitar as diferenças físicas e desmontar as culturais é não cair na de “homogeneização da vida”. Ela lembra que, assim como há nuances entre o feminino e o masculino, há diversas formas de ser mulher e de ser homem. Nem todas as meninas são comunicativas. Nem todos os meninos têm vocação para correr e lutar. “Isso não tem relação com escolhas amorosas, mas com a própria personalidade”, afirma.

 

Mat Capa 276 (Foto:  )

Pense: quantos chefs teriam seus talentos desperdiçados se cozinhar fosse tarefa só de menina? E quantas grandes cientistas não teriam entrado para a história se não tivessem desafiado padrões? Se queremos um mundo com mais liberdade para que nossos filhos possam ser eles mesmos, é preciso começar dentro de casa. Por isso, olhe para o seu filho como ele é: com ideias e gostos próprios. Ele precisa do seu apoio e incentivo para crescer feliz.

 

COMEÇO DE CONVERSA

Sexo e gênero nem sempre andam juntos. O primeiro é definido pela biologia. Ao nascer com um pênis, o indivíduo é do sexo masculino; com uma vagina, do feminino. Já o gênero pode ser pensado como o conjunto de características que definem o que é masculino e o que é feminino. Hoje, no Brasil, andar de saia ainda é um comportamento próprio do gênero feminino, mas esse conceito pode ser alterado pela mudança de cultura. Já a orientação sexual diz respeito ao gênero pelo qual cada pessoa sente atração, tanto física quanto emocionalmente. Quando é por alguém do mesmo gênero, chama-se homossexualidade, no caso do gênero oposto, heterossexualidade. Não é uma escolha, mas uma tendência, que começa a se manifestar junto com o início da puberdade.

 

4 ARMADILHAS DE ESTEREÓTIPOS

No dia a dia, muitas situações que passam despercebidas podem reforçar papéis de gênero. Não caia nessa!

Para ele, para ela – De modo geral, os brinquedos feitos para meninos carregam mais informações científicas. Um avião passa noções de proporção, aerodinâmica e tem estrutura detalhada — com cabine, trem de pouso e turbinas. Já um para meninas costuma ser rosa e com formas adaptadas para parecer mais fofo. Observe isso na hora da compra!

Mimo para um – Um estudo publicado no periódico The British Journal of Developmental Psychology (Reino Unido) mostrou que, embora se considerem imparciais, os pais tendem a tratar as meninas com mais doçura. Como eles são o exemplo, aos pesquisadores reforçam que os garotos também devem receber as manifestações emotivas – isso levaria a um melhor desempenho social e escolar e adultos mais bem-sucedidos nas relações afetivas e também no trabalho.

Desequilíbrio de tarefas – Um estudo feito para a faculdade de Educação da USP constatou que as meninas ainda são muito mais cobradas a participarem das tarefas domésticas do que os meninos. Na maioria das vezes, elas as assumem como forma de ajudar as mães, consideradas ainda as principais responsáveis pela distribuição dos afazeres.

Como uma boneca — A tentação de comprar roupas cheias de babados e frufus para meninas é grande. O problema é que quase sempre elas atrapalham a mobilidade. Enquanto isso, de shorts e camiseta, os meninos ficam sempre confortáveis para correr, pular e subir onde quiserem.

 

TUDO IGUAL?

Não dá para ignorar as diferenças biológicas entre os sexos. Mas até que ponto elas impactam na personalidade, nos gostos e no modo de agir?

No corpo, as diferenças são nítidas. O fato de eles terem pênis e elas, vagina, interfere até mesmo na troca de fraldas. No cérebro, estudos apontam que há discretas variedades anatômicas, histológicas e funcionais, como mostrou uma pesquisa da City University London (Reino Unido). O estudo concluiu que, aos 9 meses, os bebês já têm predileção por um brinquedo ou outro de acordo com seu gênero. No experimento, as crianças tinham à disposição um carro, um ursinho azul, uma bola, uma escavadeira, uma boneca rosa e um conjunto de panelas. Este último foi a escolha preferida das meninas que já engatinhavam, enquanto os meninos optaram pela bola. O resultado, para os especialistas, indica que algumas preferências podem ser inatas ao sexo.

Para o neuropediatra José Salomão Schwartzman, professor da pós-graduação em Distúrbios do Desenvolvimento da Universidade Presbiteriana Mackenzie (SP) e especializado em Neurologia Infantil no Queen Square Institute of London (Reino Unido), as diferenças entre os sexos ficam evidentes nos extremos. “Enquanto na média somos muito semelhantes, quando você pega o extremo superior, ou seja, pessoas com mais habilidade na linguagem, a grande maioria é composta por mulheres. Já no extremo inferior, entre as menos hábeis, a maioria são homens. E no que se refere à habilidade espacial ocorre o contrário”, diz. É por esse motivo, segundo ele, que mulheres são mais empáticas, transmitem melhor suas ideias por meio da linguagem e têm mais habilidades manuais. Enquanto isso, os homens teriam capacidade maior de raciocínio matemático, melhores habilidades mecânicas e se sobressaem em tarefas espaciais.

Mas nem mesmo a ciência conseguiu chegar a um veredito sobre o quanto o sexo impacta nas habilidades e competências individuais. Uma pesquisa publicada no prestigiado periódico Proceedings of the National Academy of Sciences (PNAS, EUA) concluiu que o cérebros de homens e mulheres não são tão diferentes assim. O resultado mostrou que o órgão reúne um mosaico de características femininas e masculinas: ora uma se sobressai, ora outra. Pegando o mesmo princípio dos extremos usados na comparação de Schwartzman, vamos pensar que há duas zonas cerebrais: uma mais masculina e uma mais feminina. O que os cientistas observaram é que, no máximo, 8% dos 1.400 cérebros analisados (tanto de homens como de mulheres) se encaixam apenas em uma das zonas. A grande maioria, de 23% a 53% se encaixava em ambas. Essa ideia desconstrói a polarização entre homens e mulheres e abre a possibilidade de que temos um pouco dos dois lados dentro de nós.

 

ESCOLA SEM PRECONCEITO

A educação sexual faz parte do conteúdo escolar e começa ainda na educação infantil. Por isso, abordar a questão de gênero é também papel da instituição

A abolição de gêneros no uso do uniforme não é a única iniciativa do colégio Pedro II (RJ) para romper com estereótipos. A instituição possui um Núcleo de Estudos e Ações em Gêneros e Sexualidades (Elos), que capacita docentes e servidores para lidar com questões como o processo de transexualização. Em 2014, um professor de biologia do Pedro II alterou o cabeçalho onde os alunos preenchem o nome, substituindo a última vogal por um X: alunx, uma linguagem bastante usada em redes sociais para eliminar a determinação de masculino ou feminino. Às vezes também se substitui a desinência nominal por “e”: amigo ou amiga vira “amigue”.

“Já no ensino fundamental, se começa a discutir sobre conceitos como ‘coisa de menino’ e ‘coisa de menina’, tudo durante as brincadeiras”, explica Jorge Marques, coordenador do Elos.
Mas essas questões não são bem aceitas por todos os pais. Um grupo até organizou um protesto alegando que a escola estaria aplicando uma ideologia de gênero e doutrinando o ensino.

No Colégio Soleil (SP), muitas famílias também não reagiram bem quando a coordenadora pedagógica Consuelo Leão assumiu o posto, há nove anos, e inseriu a educação sexual para os pequenos. “Na educação infantil, é mais um trabalho sobre gênero do que qualquer outra coisa”, diz. Lá, meninos e meninas podem fazer balé e futebol; no cantinho da fantasia, não há separação entre roupas de princesas e de heróis e desde cedo ensina-se a nomenclatura certa dos órgãos sexuais. “O fato de dar apelidos já cria tabu. Sempre dizemos às crianças: ‘não esqueça de balançar seu pênis’ ou  ‘limpe sua vagina’. São palavras que indicam partes do corpo, tanto quanto cabeça ou cotovelo”, explica.

A educação sexual também se tornou pauta de outros países nos últimos tempos. Na Austrália, todas as escolas do estado de Victoria terão aulas  sobre estereótipos, em uma disciplina chamada Relações Respeitosas. Vanguarda? Talvez por lá. Na Finlândia, que ostenta um dos melhores sistemas de ensino do mundo, a educação sexual faz parte do currículo escolar desde os anos 1970.

 

Mat Capa 276 (Foto:  )

Para a educadora Gisela Wajskop, especializada em educação infantil e colunista da CRESCER, é papel das escolas, sim, não reforçar estereótipos. Recentemente, ela inaugurou em São Paulo uma escola para crianças de até 10 anos e, entre as iniciativas para uma educação mais igualitária está a construção de banheiros unissex. O que não quer dizer ignorar as diferenças entre os sexos. “Obviamente elas existem. Mas é preciso deixar de lado o preconceito e o moralismo”, afirma. Para crianças de até 4 anos, não há divisórias entre os vasos. Para os mais velhos, que já se preocupam com a privacidade, as cabines têm travas dentro que, por segurança, abrem por fora.

Quando se fala em educação, é preciso lembrar que as crianças vão se construindo a partir de várias referências: classe social, religião, modelos que têm em casa, informações emitidas pela mídia. “A escola tem a função de diversificar e ampliar as referências que elas recebem, expandindo seu mundo e estimulando seu senso crítico”, explica Consuelo. Uma coisa, porém, é certa: a criança precisa escutar dos professores o mesmo discurso que ouve em casa. “A escola e a família precisam estar ligadas por valores próximos. Se não tem isso, de fato essa instituição talvez  não seja para ela”, conclui.

 

LIVRE PARA FAZER ESCOLHAS

Rosa, azul. Bonecas, carrinhos. Por que nada disso é (ou deveria ser) exclusivo nem deles nem delas?

Durante as brincadeiras, a criança tende a reproduzir os papéis sociais dos adultos. Nos últimos tempos, graças a uma maior participação dos homens nas tarefas domésticas e nos cuidados com as crianças, tem sido mais comum ver meninos brincando de bonecas. Simultaneamente, as meninas também têm se interessado por carros ao verem suas mães ao volante. Em uma enquete realizada no site CRESCER, perguntamos aos leitores se os filhos (meninos) pediram uma boneca de Dia das Crianças. Das 183 respostas, 10% dos meninos pediram o presente, e dois terços entre eles tiveram o desejo atendido. No Paraná, uma marca de brinquedos lançou um conjunto de panelinhas em tons neutros, como laranja e verde, e utilizou meninos nas imagens de divulgação. “Quem disse que carrinho é brinquedo de menino e boneca, de menina?

Já faz um tempo que homens e mulheres desempenham o mesmo papel em inúmeras atividades e, para crianças, o que importa é a diversão”, informa o comunicado da fábrica.
De fato, quando os pais possibilitam que a criança experimente todo tipo de brincadeira, independente da cor ou do brinquedo, eles abrem um leque de habilidades que está acima de qualquer discussão sobre gênero ou aptidões biológicas. Ao brincar de boneca, os meninos exercitam o papel de pai, aprendem sobre a importância do cuidar, da delicadeza. Ao brincar de blocos, aviões e carrinhos, as meninas estimulam as noções espaciais.

No entanto, mesmo com as mudanças pontuais que se percebe em muitas famílias e no mercado, como no caso da marca de brinquedos paranaense, as lojas reproduzem, em sua estrutura física, as divisões entre peças para meninos e para meninas. O mesmo acontece nas grandes lojas de departamentos de roupas, em que é possível verificar a predominância de tons rosa e roxo para meninas, bem como azul, verde e marrom para meninos. Em meados de setembro, a assessoria de imprensa de uma marca de lojas desse tipo distribuiu para os jornalistas um release com informações sobre a nova coleção de roupas para o Dia das Crianças. “A Barbie é um dos destaques e ganha uma linha especial composta por um guarda-roupa pensado para a garota que gosta desse lifestyle, com muito jeans, pink e listrados”, informou a nota. Para os meninos, “os carrinhos Hot Wheels e o desenho animado Patrulha Canina fazem sua estreia nas araras.” Solicitada a dar entrevista, a assessoria de imprensa da marca não se pronunciou.

“O mercado contribui para o reforço dos estereótipos de gêneros. Raramente, até por questões econômicas, vai propor rupturas. Normalmente é reflexo, raramente é vanguarda”, afirma a pesquisadora de tendências Clotilde Perez, pós-doutora em Design Thinking pela Stanford University (EUA). Nos últimos tempos, como resultado desse espelhamento, ela tem notado uma atenção maior das empresas em contemplar a diversidade – e não porque as grandes marcas, subitamente, tenham sido tomadas por uma consciência igualitária. “Ocorre disrupção se os novos valores apresentados têm boa chance de aceitação”, explica. Por isso, entenda-se vender (e lucrar) mais.

Em um passeio pelo shopping, a jornalista Renata Gallo, 38 anos (mãe de Lorena, 7, e Anita, 4), e a fisioterapeuta Telma Gagliardo, também 38 (mãe de Laura, 8, e Lucas, 2), ficaram chocadas ao se depararem com um biquíni tamanho 6 com bojo. E foi aí que tiveram um estalo de montar uma marca de roupas com estampas que fugissem do óbvio, como saias e roupas de banho com desenhos de cactos, clipes e imagens de raio X. Renata e Telma ficaram entusiasmadas ao notar que muitas mães compravam leggings para seus meninos – a peça é usualmente vista como feminina – e, mais ainda, encomendavam calças com a mesma estampa para elas próprias. Instaurou-se, assim, um novíssimo “tal mãe, tal filho”.

NA PRÁTICA, COMO LIDAR?

Ainda que você permita que o seu filho seja o que ele é, os olhares tortos para atitudes que fogem dos padrões ainda são muitos. saiba o que fazer

Em meio a todos os acontecimentos e mudanças da sociedade, os questionamentos dos pais são inevitáveis: em um mundo que começa a reconhecer as diversas nuances na sexualidade, muito além do binarismo, qual é o protocolo a ser seguido com elas? Para o psicanalista Alexandre Sadeeh, coordenador do Ambulatório Transdiciplinar de Identidade de Gênero e Orientação Sexual do Hospital das Clínicas de São Paulo, o melhor é permitir à criança vivenciar os dois mundos – o masculino e o feminino – e manifestar suas opiniões. “O que os filhos mais buscam é o amor dos pais. Eles sofrem se percebem que os deixam tristes com seu comportamento. Isso vai ecoar no futuro”, afirma.

Além disso, vale lembrar que a curiosidade faz parte do processo de desenvolvimento das crianças e experimentar é, sim, saudável. As roupas culturalmente definidas como femininas, com mais brilhos, detalhes e cores vibrantes, naturalmente chamam mais a atenção – tanto deles quanto delas. “Às vezes, um menino quer andar de salto alto para brincar de se equilibrar e isso não tem nada a ver com a sua sexualidade. O olhar viciado do adulto é que dá um significado diferente”, explica a neuropsicóloga Deborah Moss, mestre em Psicologia de Desenvolvimento Infantil da Universidade de São Paulo. A melhor diretriz para os pais é lembrar que, antes de ser menino ou menina, seu filho ou filha é um ser único e com características próprias. A segunda é que, além de respeitar a individualidade dele, não dá para ignorar os preconceitos que ainda existem. Por mais que as mudanças estejam em curso, a sociedade ainda julga e a criança precisa estar preparada para lidar com isso. Confira alguns dilemas que podem surgir aí na sua casa :

 

Meninas são fisicamente mais frágeis. Como protegê-las?

Para a pedagoga Regina Ingrid Bragagnolo, primeiro é preciso mudar esse olhar: “Definir a mulher como frágil determina que há áreas em que ela não pode circular, coisas que não pode fazer”. O melhor para evitar o assédio a meninos e meninas é ensinar desde cedo que uma pessoa só pode tocar nosso corpo se tiver permissão (o que vale inclusive para beijos e abraços) e que certas partes são privadas.

Meu filho quer usar saia, mas temo que as pessoas sejam hostis com ele.

“O problema é o impacto dessa atitude em um meio que não está culturamente acostumado”, diz Deborah. Explique à criança que ela poderá ouvir comentários desagradáveis, mas não encoraje respostas agressivas. Ensine-a a dizer que se veste assim porque se sente bem.

Posso furar a orelha da minha filha?

“Se a menina quer furar a orelha, sem problemas. Mas furar a orelha na maternidade é uma imposição desnecessária”, diz a doutora em Ciência da Informação Joana Ziller, do Núcleo de Direitos Humanos e Cidadania LGBT da Universidade Federal de Minas Gerais.

Meu filho diz que rosa é cor de gay.

Pergunte primeiro de quem ele ouviu isso e dê o crédito. “Ah, então o Fulano acha que quem usa rosa é gay. E você, o que acha?” Devolva o questionamento, busque exemplos e, acima de tudo, deixe claro que “ser gay” não é problema, é apenas um modo de ser.

 

Mat Capa 276 (Foto:  )

LIVROS PARA LER COM SEU FILHO

Meninas gostam de voar. Meninas são fortes. Meninas amam aventura. Com desenhos lindos, a mensagem é clara: liberdade de escolha é tudo. Coisa de menina, texto e ilustrações de pri andrade, ed. companhia das letrinhas, R$ 34,90. Livre.

Joana e Pedro são irmãos e vivem brigando porque ela gosta de jogar bola e ele chora em filmes tristes. Até que eles passam debaixo do arco-íris e viram… João e Pedra.
Faca sem ponta, galinha sem pé, Texto de Ruth Rocha, ed. salamandra, R$ 40. a partir de 7 anos.

Enquanto Pedro fazia tudo torto, Tina era certinha até demais. E nenhum deles estava contente: um queria ser como o outro. Encontrar o equilíbrio é a moral da história. Pedro e Tina (Uma amizade muito especial), Texto e ilustrações de Stephen Michael King, ed. Brinquebook, R$ 38. a partir de 2 anos.