O feminismo, enquanto movimento político e social, tem transformado profundamente a paisagem da arte contemporânea brasileira. Artistas, curadoras e coletivas feministas vêm questionando estruturas patriarcais, resgatando narrativas apagadas e propondo novas formas de criar e fruir arte. Em um país marcado por desigualdades de classe, raça e gênero, a arte feminista emerge como uma ferramenta poderosa de resistência e reflexão.
Uma genealogia feminista na arte brasileira
Embora o feminismo tenha ganhado visibilidade no Brasil apenas na segunda metade do século XX, as sementes de sua influência na arte já estavam sendo plantadas há décadas. Artistas como Tarsila do Amaral e Anita Malfatti, ainda que não se identificassem como feministas no sentido político, desafiavam normas de gênero ao ocuparem um espaço predominantemente masculino.
Nos anos 1970, em meio à ditadura militar, nomes como Anna Maria Maiolino e Letícia Parente começaram a explorar, de maneira mais explícita, questões de gênero e poder em suas obras. Essas artistas lançaram as bases para uma arte feminista que, décadas depois, continuaria a desconstruir hierarquias e ampliar os limites do que é considerado arte.
Exemplos de obras e artistas feministas marcantes
Rosana Paulino é um dos maiores nomes da arte feminista brasileira contemporânea. Sua obra “Parede da Memória” é uma instalação impactante que resgata as histórias de mulheres negras apagadas pela narrativa oficial. A peça combina retratos antigos com elementos simbólicos que denunciam a violência estrutural e a exclusão histórica enfrentada por mulheres negras.
Letícia Parente, pioneira na videoarte brasileira, marcou o cenário com “Marca Registrada” (1975), um vídeo no qual ela costura a frase “Made in Brazil” na sola do próprio pé. A obra aborda questões de corpo, identidade e violência simbólica, desafiando o espectador a refletir sobre o controle exercido sobre os corpos femininos.
Adriana Varejão, embora não seja exclusivamente feminista, explora temas de gênero, história e colonialismo em suas obras. Em “Celacanto Provoca Maremoto” (2004), ela aborda questões de violência e repressão, trazendo uma estética que combina tradição e subversão.
Berna Reale, artista e ativista, utiliza performances provocativas para questionar a violência e a opressão. Em “Palomo” (2012), ela monta um cavalo pintado de vermelho enquanto carrega uma lança, evocando imagens de guerra para discutir o papel da mulher em um mundo dominado por conflitos e desigualdades.
A interseccionalidade como norte
No Brasil contemporâneo, a arte feminista não é apenas sobre gênero, mas também sobre raça, classe, sexualidade e território. Artistas como Rosana Paulino e Jaider Esbell (embora este último atue fora do escopo do feminismo tradicional, ele contribui para debates interseccionais) trazem para suas obras perspectivas que desafiam o feminismo branco e burguês, muitas vezes associado às elites culturais.
Rosana Paulino, por exemplo, usa a história e o corpo negro como ponto de partida para criticar a colonialidade que ainda define as relações de poder no Brasil. Obras como “Parede da Memória” resgatam histórias de mulheres negras apagadas pela narrativa oficial e denunciam a violência que persiste contra seus corpos e subjetividades.
Coletivos feministas: arte como ação política
Além das artistas individuais, coletivos feministas têm desempenhado um papel crucial na promoção de uma arte engajada e acessível. Grupos como o “Mulheres na Arte” e “Rede NAMI” promovem exposições, oficinas e ações que visam democratizar o acesso à produção artística e fortalecer redes de apoio entre mulheres artistas.
Esses coletivos também têm explorado novas formas de engajamento, utilizando plataformas digitais para ampliar o alcance de suas mensagens. Redes sociais como Instagram e TikTok tornaram-se vitrines para projetos que questionam padrões de beleza, desafiam a objetificação feminina e promovem corpos dissidentes.
Instituições e o desafio da inclusão
Embora o feminismo tenha conquistado espaço significativo na produção artística, as instituições culturais brasileiras ainda enfrentam desafios para se tornarem verdadeiramente inclusivas. Museus e galerias continuam a privilegiar artistas homens, brancos e de classes altas, enquanto mulheres, especialmente negras e indígenas, são frequentemente marginalizadas.
Exposições como “Histórias Feministas: artistas depois de 2000”, realizada no MASP em 2019, representam um avanço, mas são ainda exceções em um cenário dominado por narrativas eurocêntricas e masculinas. Além disso, a precarização do trabalho cultural, intensificada pela pandemia de COVID-19, afetou desproporcionalmente mulheres artistas, muitas das quais já viviam em condições econômicas vulneráveis.
Arte feminista como espaço de cura e transformação
A arte feminista brasileira também tem se destacado por sua capacidade de criar espaços de cura e transformação. Projetos como “AfroTranscendence”, idealizado pela artista e curadora Diane Lima, combinam práticas artísticas e terapêuticas para promover o autoconhecimento e o empoderamento de mulheres negras.
Essas iniciativas subvertem a lógica produtivista da arte contemporânea, propondo um fazer artístico que valoriza processos em vez de produtos, e comunidade em vez de mercado. Em um país onde a violência de gênero é endêmica, a arte feminista oferece um caminho para a reconstrução de subjetividades e a criação de redes de solidariedade.
Um futuro feminista para a arte brasileira
O impacto do feminismo na arte contemporânea brasileira é inegável e continuará a se expandir nos próximos anos. Em um momento histórico em que as tensões políticas e sociais estão à flor da pele, a arte feminista oferece uma lente essencial para compreender e transformar a realidade.
Como bem disse a escritora e feminista bell hooks: “A arte nos permite encontrarmos uns aos outros de maneira profunda, às vezes mais profunda do que as palavras.” Que a arte feminista brasileira continue a ser esse encontro poderoso e transformador, desafiando estruturas, resgatando histórias e propondo novos futuros.