Começou em 2018 e o que temos visto é um número crescente de casamentos “no papel” sendo realizados por LGBTQIA+. No fatídico ano que antecedeu a entrada da atual gestão no país a motivação foi um temor de que o atual presidente e seus aliados trabalhassem para revogar este direito à população não heterossexual. À época, mais que triplicou o percentual desta “formalização”.

Este texto, no entanto, vem falar sobre uma outra questão ligada a essa, que foi a reação de algumas pessoas da própria comunidade LGBTQIA+, criticando esta “onda”. Críticas aos casais. Várias. Algumas falam sobre estes casais estarem cedendo a uma suposta “estatização do amor”, sugerindo que deveríamos tomar cuidado com este “impulso” e combater o modelo de casamento atual.

Importante marcar aqui que, em uma sociedade heteronormativa, críticas a toda e qualquer estrutura que mantém pessoas como nós em uma vida à margem são mais que bem vindas e necessárias. Mas a quem se direcionam às críticas? E, para além disso, quais são as subjetividades, as vontades, os desejos e as necessidades concretas de quem escolhe se casar?

Muitas vezes, lendo várias das críticas direcionadas aos casais, pensei em como algumas das críticas (algumas, não todas) eram fruto de ingenuidade, irresponsabilidade, quiçá, privilégio. Sabe por quê?

Porque em algumas ocasiões — e que bom seria se fosse em todas — há a parte do amor também, dentro de uma perspectiva “não possessiva” do cuidado.

A gente pode lugar por um outro mundo, por uma outra lógica, mas sem esquecer como é viver no espaço-tempo que estamos neste exato momento. Vivemos neste mundo hoje e, neste sentido, para algumas pessoas, é importante – e necessário – estar ou se sentir segura nele hoje. São subjetividades e coisas concretas demais para serem julgadas à luz daquilo que a gente gostaria que o mundo fosse, mas ainda não é.

O “casamento estatizado”, como disseram, realmente “cuida” de muitas coisas para uma família que pretende construir coisas juntas e ter uma dinâmica de co-responsabilidades diversas, como a de criar uma criança conjuntamente, por exemplo, sendo do mesmo gênero.

Outros documentos, inclusive, desmembram dessa ideia. Tipo, o de “maternidade socioafetiva”.

Trata-se de um documento que “atesta” ou “garante” que eu amo Gabriela e que tenho responsabilidades com Amora, a bebê mais fofa do planeta que veio ao mundo em um modelo familiar não convencional? Óbvio que não. Mas são estes documentos que agilizam processos e agilizariam outros, em minha falta, por exemplo, numa situação extrema. Providências relacionadas à saúde e educação, por exemplo. 

Digo isso como quem também passou recentemente por um processo de resolução de burocracias, após uma perda familiar importante.

Acreditem! O fato de estar tudo certinho, “no papel” poupou tempo de muitas coisas que, cada vez que a gente encosta, dói. Numa situação de perda, ter que ficar “comprovando”, discutindo e brigando por coisas óbvias é bem ruim. Dilacerante.

Ainda que eu questione a “estatização” das relações a partir dessa burocratização, vivo NESTA sociedade, que se organiza dessa forma. Portanto, pelo cuidado entre nós, casar no civil foi o que minha esposa e eu escolhemos fazer. Já tínhamos escolhido, na verdade. Mas sim, entramos na onda de 2018 e antecipamos. 

Porque se pode acontecer, pode acontecer. Esta matéria aqui (para assinantes e/ou usuários cadastrados) tem uma informação importante neste sentido: “a jurisprudência que garante o casamento de pessoas do mesmo gênero só poderia ser revertida se o Congresso aprovasse uma lei impedindo o casamento entre pessoas do mesmo sexo”. É difícil acontecer? Pode ser. Impossível? Não.

Obviamente, gostaríamos de ter o privilégio de poder casar apenas por amor, como muitas pessoas (acham) que fazem. Mas, infelizmente, este ainda não é o mundo que vivemos. Tomara que seja um dia. Tomara que seja para Amora.

Nós decidimos simplesmente nos protegermos naquilo que é possível nos proteger. 

Sapatão por amor e convicção, casada, mãe de Amoras.

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