Em um país onde o cinema frequentemente ignorou ou marginalizou narrativas LGBTQIA+, “Amor Maldito” (1984) se destaca como um marco histórico. Este é o primeiro longa-metragem brasileiro a abordar abertamente um romance lésbico e foi dirigido por Adélia Sampaio, a primeira mulher negra a dirigir um longa no Brasil. Em um contexto de censura, preconceito e conservadorismo, tanto o filme quanto sua diretora romperam barreiras que ainda ecoam no cenário cultural nacional.
Adélia Sampaio: Uma Pioneira no Cinema Brasileiro
Nascida em Belo Horizonte, Minas Gerais, Adélia Sampaio começou sua trajetória no cinema como secretária em uma distribuidora de filmes. A paixão pela sétima arte logo a levou a se envolver diretamente na produção cinematográfica, assumindo diversos papéis, desde assistente de produção até roteirista e diretora.
Em um meio dominado por homens brancos, a trajetória de Adélia é marcada por sua determinação em ocupar espaços que raramente eram acessíveis a mulheres, especialmente mulheres negras. Sua ousadia culminou na realização de “Amor Maldito”, que consolidou seu nome na história do cinema brasileiro, apesar das dificuldades de financiamento, distribuição e aceitação.
“Amor Maldito”: O Filme que Rompeu o Silêncio
Baseado em uma história real, “Amor Maldito” narra o romance entre duas mulheres, Fernanda (Monique Lafond) e Sueli (Wilma Dias). Após o suicídio de Sueli, Fernanda enfrenta um julgamento moral e jurídico que reflete a intolerância da sociedade brasileira da época em relação à homossexualidade feminina.
O filme começa com Sueli sendo encontrada morta após uma discussão com Fernanda. O relacionamento entre as duas é alvo de questionamentos e especulações durante o julgamento, onde a sexualidade de Fernanda é usada como arma para demonizá-la.
Adélia Sampaio escolheu explorar o preconceito e a hipocrisia que cercam as relações homoafetivas em uma sociedade patriarcal. Com diálogos incisivos e uma narrativa ousada, o filme denuncia a forma como a justiça e a sociedade frequentemente culpabilizam as mulheres LGBTQIA+ por existirem fora das normas.
O Contexto de Produção
“Amor Maldito” foi lançado em 1984, durante o processo de redemocratização do Brasil, após o fim da ditadura militar. Apesar de a censura já não ser tão rígida como nos anos anteriores, temas como sexualidade feminina e homoafetividade continuavam sendo tabus.
Adélia enfrentou resistência não apenas pelo conteúdo do filme, mas também por ser uma mulher negra dirigindo um longa em um cenário cinematográfico amplamente elitista e branco. O orçamento apertado e as dificuldades de distribuição limitaram o alcance do filme, mas ele ganhou notoriedade como uma obra pioneira.
Impacto e Legado
Embora “Amor Maldito” não tenha recebido o devido reconhecimento em sua época, o filme é hoje celebrado como uma obra fundamental para a história do cinema brasileiro. Ele abriu espaço para debates sobre sexualidade, gênero e a interseccionalidade das opressões enfrentadas por mulheres negras e lésbicas no Brasil.
Adélia Sampaio, por sua vez, permanece como um símbolo de resistência e pioneirismo. Sua coragem em abordar um tema tão delicado e sua presença como mulher negra em uma posição de destaque na indústria cinematográfica continuam a inspirar cineastas e artistas até hoje.
O filme também destaca como a homofobia e o machismo estrutural influenciam o julgamento moral de relações homoafetivas, um tema que, infelizmente, ainda é relevante no Brasil contemporâneo.
O Reconhecimento Tardio
Nos últimos anos, o trabalho de Adélia Sampaio tem recebido maior atenção, especialmente em retrospectivas e mostras de cinema voltadas para destacar narrativas de mulheres e negros no audiovisual. Ela foi homenageada em eventos como o Festival Internacional de Cinema de Mulheres, e “Amor Maldito” ganhou projeção em plataformas de streaming e exibições especiais.
Além disso, a cineasta tem sido reconhecida como uma referência para novas gerações de mulheres negras que buscam ocupar o espaço cinematográfico e contar histórias que foram silenciadas por décadas.
Reflexões Sobre Representatividade
“Amor Maldito” continua sendo uma obra relevante porque revela a persistência de muitas das questões que enfrentamos hoje: a lesbofobia, o racismo e a dificuldade de mulheres negras em serem reconhecidas como criadoras de narrativas complexas e inovadoras.
Adélia Sampaio não apenas dirigiu um filme; ela construiu um manifesto em favor da liberdade e da visibilidade. Seu trabalho nos lembra que o cinema é, antes de tudo, um espaço de resistência — especialmente quando ele dá voz a quem historicamente foi silenciado.
Conclusão
“Amor Maldito” não é apenas um marco histórico; é um lembrete de que o cinema pode ser uma ferramenta poderosa para desafiar preconceitos e criar novas possibilidades de representação. A coragem de Adélia Sampaio em contar essa história em 1984 nos inspira a continuar lutando por um cinema mais diverso e inclusivo.
Se você ainda não assistiu “Amor Maldito”, procure por ele e mergulhe em uma narrativa que é, ao mesmo tempo, um retrato do passado e um grito para o futuro. Adélia Sampaio e suas protagonistas merecem estar no centro das discussões sobre a potência do cinema brasileiro.