Criar uma rotina de autocuidado é como construir um pequeno altar em homenagem a si mesma, um espaço que celebra não apenas o seu corpo, mas também sua mente, sua história e sua capacidade de continuar. Para mulheres lésbicas e bissexuais brasileiras, muitas vezes atravessadas por questões de raça, classe e gênero, o autocuidado vai muito além do skincare caro ou do momento do café com leite da manhã. É, antes de tudo, um ato político, uma declaração de sobrevivência e resistência.
Então, como começar? Antes de tudo, é preciso se livrar da ideia de que autocuidado é um privilégio. Embora as redes sociais estejam saturadas de imagens que vendem autocuidado como um hobby burguês, ele pode ser acessível, real e profundamente transformador.
1. Autocuidado é sobre prioridade, não perfeição
O mundo não foi desenhado para priorizar mulheres como nós. O mercado de trabalho, os espaços culturais, as políticas públicas — todos parecem funcionar em oposição ao nosso bem-estar. Por isso, cuidar de si mesma é um ato de romper com essas estruturas. Não estamos falando de ser a mulher que faz yoga às 6 da manhã enquanto toma um smoothie verde (a menos que isso seja seu desejo genuíno, claro). Trata-se de colocar suas necessidades no centro da equação, mesmo quando ninguém mais parece fazer isso.
Pense: o que você realmente precisa agora? É descanso? Conexão com suas raízes? Ou talvez só um momento de silêncio para ouvir seus próprios pensamentos? Defina uma prioridade, uma coisa de cada vez.
2. Reconheça o impacto das opressões estruturais
Autocuidado para uma mulher negra e/ou periférica nunca será igual ao de uma mulher branca e rica. O racismo, a homofobia e a desigualdade social moldam nossos corpos, nossas emoções e até mesmo nossas doenças. Estudos publicados pela Organização Pan-Americana da Saúde indicam que mulheres negras e LGBTI+ enfrentam índices maiores de estresse e depressão por causa da discriminação acumulada no dia a dia.
Por isso, cuidar da sua saúde mental é essencial. Busque terapia, se for possível. Existem iniciativas como a Plataforma Pretas na Psicanálise, que conectam mulheres negras a psicólogos negros com valores sociais. Caso o acesso à terapia seja inviável, criar redes de apoio comunitário pode ser um ponto de partida.
3. Seu corpo também é resistência
Por muitos anos, as mulheres LGBTQI+ foram ensinadas a sentir vergonha de seus corpos. O autocuidado físico, nesse caso, pode ser um exercício de reconciliação. Movimentar-se, dançar, andar de bicicleta ou praticar um esporte não precisa ser uma obrigação, mas sim um reencontro. O movimento ajuda a aliviar o estresse e pode ser especialmente útil para lidar com os efeitos psicológicos de viver em uma sociedade muitas vezes hostil.
Se você tem pouco tempo ou recursos, experimente práticas simples. Alongamentos matinais, uma caminhada leve ao ar livre ou até mesmo deitar no chão por alguns minutos para respirar fundo podem fazer uma diferença surpreendente.
4. Nutrição como cuidado e consciência
Comer bem é mais do que alimentar o corpo: é também honrar suas origens e tradições. Muitas de nós cresceram com mães, tias ou avós que sabiam como transformar qualquer ingrediente simples em algo mágico. Voltar a essas memórias pode ser uma forma de autocuidado emocional.
Além disso, é importante pensar no impacto da nossa alimentação no humor e na energia. Alimentos ricos em nutrientes, como frutas, verduras, grãos integrais e proteínas, não são apenas “coisas de dieta”; são combustíveis para o cérebro e o coração. Porém, nada de pressão. Equilíbrio é a palavra-chave. Um chocolate no meio do dia ou uma cervejinha com amigas também têm seu lugar.
5. Espiritualidade e reconexão
Espiritualidade não é apenas sobre religião, mas sobre conexão consigo mesma e com algo maior. Para muitas mulheres negras e indígenas, reconectar-se com tradições ancestrais pode ser uma forma de autocuidado profundamente curativa.
Seja acendendo uma vela para seus orixás, seja meditando, seja escrevendo um diário de gratidão, essas práticas criam um espaço para a introspecção e para o fortalecimento interno. Lembre-se de que seu tempo é sagrado, e cada minuto que você investe em si mesma é um lembrete de que você merece estar aqui.
6. Redes de apoio e o poder do coletivo
Nenhuma rotina de autocuidado está completa sem o calor de uma comunidade. Mulheres lésbicas e bissexuais, especialmente aquelas em seus 30+, sabem que as redes de apoio salvam vidas. Seja com amigas, seja em grupos de mulheres LGBTQI+ ou em coletivos feministas, encontrar um espaço onde você possa ser vulnerável e genuína é essencial para sua saúde emocional.
Procure grupos de discussão online, clubes de leitura queer ou eventos de cultura negra e LGBTQI+. Estar entre pessoas que entendem sua vivência pode ser um alívio poderoso.
7. Desacelere, sem culpa
Vivemos em um mundo que glorifica a produtividade, mas o descanso é revolucionário. Dormir o suficiente, dizer “não” a compromissos excessivos e respeitar seus limites são práticas fundamentais de autocuidado. Estudos como os da National Sleep Foundation mostram que mulheres que dormem menos de 7 horas por noite têm mais chance de desenvolver problemas de saúde mental. Ou seja, dormir não é preguiça; é sobrevivência.
Conclusão: O autocuidado é seu, e só seu
Criar uma rotina de autocuidado não é seguir uma fórmula universal. É uma jornada única, que leva em conta suas dores, seus prazeres e suas necessidades. Seja gentil consigo mesma ao longo desse caminho. Lembre-se de que autocuidado não é apenas o que você faz, mas também o que você escolhe não fazer. É sobre escolher, todos os dias, ser sua maior aliada.
E como bem disse Audre Lorde: “Cuidar de si mesma não é autoindulgência, é autoconservação, e isso é um ato de guerra.” Então, guerreira, como será o primeiro passo?