Como lidar com ex-parceiros em famílias com filhos.

As nossas famílias – quando vistas pelos olhos da velha guarda conservadora – não obedecem às fórmulas prontas das comédias de domingo à tarde. Quando uma mulher LBTQ+ põe filhos no mundo (seja por parto, adoção, inseminação independente ou arranjos afetivos pouco convencionais), a família passa a ser um caldeirão de afetos, cicatrizes, buscas identitárias e, claro, histórias com ex-parceiras ou ex-parceiros. Entre sorrisos e silêncios constrangidos, a pergunta inevitável é: como lidar com essas pessoas que um dia dividiram a casa, a cama e os sonhos? Principalmente quando, no centro disso tudo, estão crianças que precisam, antes de qualquer outra consideração, de estabilidade emocional e afeto.

Este é o drama contemporâneo de muitas famílias brasileiras formadas por mulheres lésbicas, bissexuais, trans ou queer, especialmente após os 30 anos, quando a configuração familiar é mais complexa. Não falamos de um “família margarina”, mas de um cenário no qual a cor da pele, a classe social e o gênero moldam as dinâmicas de poder, o acesso a direitos e o modo como a parentalidade é exercida e entendida.

Segundo dados do IBGE, embora ainda não tenhamos estatísticas amplamente detalhadas sobre a composição das famílias LBTQ+, sabe-se que o número de casais homoafetivos com filhos vem aumentando no Brasil desde a legalização da união estável para casais do mesmo sexo em 2011, e do casamento igualitário em 2013 (1). Além disso, organizações como a ABRAFH (Associação Brasileira de Famílias Homotransafetivas) evidenciam que famílias com duas mães ou múltiplas mães – algumas delas negras, outras de classes menos privilegiadas – estão deixando de ser invisíveis para reivindicar espaços nas escolas, nos sistemas de saúde e nos fóruns de decisão (2).

É nesse contexto que, quando um relacionamento se desfaz, não se pode ignorar a presença dos filhos. A ex-parceira, a ex-namorada, quem quer que seja, faz parte de uma memória afetiva que não se estilhaça tão facilmente. Há visitas a cumprir, reuniões de pais e mestres a frequentar, demandas judiciais, negociações de final de semana, férias divididas. E há, acima de tudo, o desafio de manter minimamente sã a relação entre as adultas envolvidas, tendo em conta que a sociedade, frequentemente, vê nossos vínculos familiares como uma espécie de experimento social de legalidade e reconhecimento dúbios.


A herança afetiva e o contexto do racismo estrutural

Para as mulheres negras LBTQ+ esse quadro é ainda mais complexo. A intersecção entre orientação sexual, identidade de gênero, raça e classe adiciona camadas de desigualdade. Historicamente, a mulher negra carrega o estigma de ser “forte”, de aguentar tudo calada. O racismo estrutural – esse espectro que ronda todas as esferas da nossa vida – reforça estereótipos e constrói dificuldades adicionais no acesso à justiça e à garantia de direitos parentais. Por vezes, a mãe negra é vista como menos competente para criar filhos ou menos digna de exercer a maternidade plena do que uma mãe branca, cis, heterossexual. Sendo LBTQ+, a camada de preconceitos se multiplica.

O processo de separação envolvendo filhos pode cair na vala comum de ações judiciais nas quais o preconceito pode surgir velado. Decisões judiciais já foram questionadas por favorecer sistematicamente mães brancas em detrimento de mães negras ou por não reconhecer plenamente a parentalidade da parceira não gestante quando falamos de um casal lésbico (3).

Diante desse cenário, ao lidar com uma ex-parceira no processo de separação, a mulher negra LBTQ+ enfrenta preconceitos sutis ou nem tão sutis assim: insinuações de “desajuste familiar”, desconfiança sobre sua capacidade financeira ou emocional de cuidar dos filhos, e até juízes e promotores com pouca formação sobre arranjos familiares diversos. Assim, não basta resolver as pendências emocionais com a ex. É necessário, também, navegar por sistemas racistas e homofóbicos para assegurar um ambiente seguro e justo para as crianças.


Comunicação empática e limites bem definidos

Mesmo em contextos menos extremos, a presença da ex-parceira na dinâmica familiar é um fato que exige sabedoria emocional. Não é fácil encontrar um ponto de equilíbrio entre manter o diálogo necessário e preservar o próprio bem-estar psicológico. Além disso, há o risco de reviver mágoas passadas e deixar que elas contaminem a relação entre os filhos e a ex. A chave aqui é a comunicação empática: falar com clareza, escutar com atenção, e principalmente, proteger as crianças das alfinetadas emocionais que porventura surjam entre as duas ex-parceiras adultas.

A terapeuta familiar norte-americana Esther Perel (4), embora não se debruce especificamente sobre a realidade LBTQ+ brasileira, discute amplamente como a qualidade da comunicação entre adultos após o término do relacionamento influencia diretamente o bem-estar dos filhos. Este princípio pode ser traduzido para o nosso contexto: se você e sua ex brigam a cada troca de guarda, as crianças absorvem essa tensão. Uma comunicação franca e, se possível, mediada por profissionais especializados em famílias homotransafetivas – advogadas, psicólogas, mediadoras de conflito com experiência em questões LGBTI+ – pode fazer a diferença.

Definir limites é igualmente importante. Estabeleça diretrizes claras sobre horários de visitas, modos de contato e, se necessário, mantenha tudo por escrito para evitar mal-entendidos. Ao mesmo tempo, saiba reconhecer quando a outra parte está contribuindo para um diálogo saudável. Nem todas as ex-parceiras são vilãs de novelas antigas; algumas estão genuinamente interessadas no bem-estar das crianças.


A importância do amparo legal e da informação

Num cenário ideal, as questões legais estariam claras desde o início. Contudo, a realidade no Brasil é que muitas mulheres LBTQ+ não têm seus direitos de parentalidade plenamente reconhecidos, especialmente quando não há um casamento formalizado ou uma adoção conjunta registrada. A reforma do Código Civil, a jurisprudência do STF e as regulamentações do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) nos últimos anos trouxeram avanços, permitindo o reconhecimento de filiação socioafetiva e a possibilidade de multiparentalidade (5).

É fundamental que, ao enfrentar uma separação, a mulher LBTQ+ procure orientação jurídica especializada. Organizações como a Defensoria Pública e entidades ligadas ao movimento LGBT+, como a Aliança Nacional LGBTI+ (6), podem fornecer orientação. Isso é ainda mais crucial para mães negras e de menor renda, que muitas vezes dependem de serviços públicos de assistência jurídica.

Ter as garantias formais – guarda compartilhada, regulamentação de visitas, pensão alimentícia – é mais do que apenas seguir “o protocolo legal”. É construir uma base de segurança que permita que as crianças mantenham laços afetivos com as duas mães (ou mais, em casos de multiparentalidade), independentemente das rusgas entre as ex-parceiras. Ao mesmo tempo, assegura-se que a mãe negra LBTQ+ não seja silenciada ou invisibilizada pela ex branca, por exemplo, caso haja alguma disputa assimétrica de poder.


A rede de apoio: da família escolhida às comunidades virtuais

Lidar com a presença de ex-parceiras na vida familiar não precisa ser um ato solitário. Muitas vezes, a família biológica não dá conta de compreender nossas configurações afetivas, seja por preconceito, falta de informação ou distanciamento emocional. Mas a família escolhida – aquele grupo de amigas, companheiras, ex-namoradas que se tornaram irmãs, vizinhas solidárias – pode oferecer o amparo necessário. Numa sociedade marcada pela solidão da mulher negra, o aconchego de outras mulheres que entendem os desafios da maternidade LBTQ+ é um bálsamo.

Nos últimos anos, surgiram grupos de apoio online, comunidades de mães lésbicas e bissexuais no Facebook, no Instagram, no TikTok, e fóruns especializados em parentalidade LGBT+. Por exemplo, a ABRAFH (2) e a Rede Nacional de Mães Lésbicas e Bissexuais oferecem espaços de troca, orientação e acolhimento. Ali se compartilham experiências, indicam-se advogadas amigas, psicólogas e médicas não discriminatórias, e assim, vai-se construindo um escudo afetivo contra a tempestade de preconceitos.

A criação de coletivos informais também ajuda a trazer visibilidade e representatividade. Quando uma mulher negra LBTQ+ vê outra na mesma situação – equilibrando a carreira, a maternidade, o racismo e uma ex-parceira complicada – a sensação de estar sozinha se dissipa um pouco. Trocamos dicas sobre como conduzir uma conversa tensa, como encarar a audiência de conciliação, ou até que palavras usar para explicar à criança que a dinâmica entre as mães mudou, mas o amor continua lá.


Crianças no centro: honestidade, acolhimento e estabilidade

No fim do dia, o principal é garantir o bem-estar das crianças. Elas precisam sentir que, apesar da separação, seguem amadas e cuidadas. Não é recomendável fingir que nada aconteceu – as crianças percebem as tensões no ar. Tampouco é sensato colocar nelas o peso de escolher lados ou avaliar quem “está certo” ou “está errado”.

A escritora bell hooks, uma intelectual negra feminista cujas reflexões atravessam raça, gênero e afetividade, lembrou ao mundo a importância de educar as crianças no amor, na verdade, na capacidade de escutar e respeitar as diferenças (7). Adaptando essa lição ao nosso contexto: é fundamental conversar de forma honesta, em linguagem apropriada à idade, explicando que as mães não estão mais juntas, mas que o amor por eles (filhos) continua igual, que cada uma delas segue sendo um porto seguro.

A criança também precisa saber que não é responsável pela separação. Esse é um ponto delicado, pois crianças de famílias não heteronormativas já crescem percebendo que há um estigma social em torno da sua família. Quando acrescentamos o fator racial – mães negras, muitas vezes criadas em bairros periféricos, lutando por mobilidade social – a criança já carrega em si o fardo do preconceito alheio. Por isso, reforçar que o núcleo familiar continua existindo sob uma nova forma ajuda a manter a estabilidade emocional.


Pensando novas possibilidades: amizade, civilidade e novos arranjos

Se há maturidade emocional e vontade genuína, ex-parceiras podem se tornar aliadas na tarefa de criar filhos. Isso não é utopia. Mulheres LBTQ+ frequentemente reinventam as noções de família ao incluir na parentalidade avós, tias, madrinhas, doadoras de sêmen que se tornam próximas, ex-namoradas que viram “tias” carinhosas. A criatividade afetiva não conhece fronteiras fixas.

A mediação profissional – sessões com terapeutas familiares especializadas em questões LBTQ+ – pode apontar caminhos. Livros sobre parentalidade LGBT+, como “The Queer and Transgender Resilience Workbook” de Anneliese A. Singh (8), embora focados em contextos norte-americanos, trazem estratégias psicológicas úteis: criar espaços de escuta e validação, reconhecer traumas anteriores, e construir novos pactos de convivência.

Não se trata de forçar uma amizade onde houve mágoa profunda, mas de tentar chegar a um estado de civilidade e respeito mútuo em nome das crianças. Essa tarefa, claro, exige tempo e paciência. Quando a raiva e a dor do término dão lugar à compreensão de que as crianças merecem a presença equilibrada de todas as suas mães, pode surgir uma relação pós-romântica sustentável, capaz de atravessar as diferenças e, quem sabe, se tornar uma referência positiva para outras famílias LBTQ+ que observam em silêncio, procurando exemplos.


Conclusão

Lidar com ex-parceiros ou ex-parceiras – em famílias com filhos quando se é uma mulher LBTQ+ no Brasil é um desafio multifacetado. Há o contexto legal, a intersecção de raça e classe, as pressões sociais, os muros erguidos pelo preconceito. Há também o compromisso com as crianças, que devem crescer em um ambiente de segurança e afeto. É preciso aprender a comunicar, estabelecer limites, buscar apoio, legalizar situações informais, e sobretudo, reconhecer que nossas famílias são legítimas, complexas e inteiramente dignas de respeito.

Em um país onde a intolerância ainda grita alto, existimos nós, mulheres negras LBTQ+, criando filhos, enfrentando ex-parceiras, reconstruindo laços, exigindo direitos. Nossa voz ecoa no vento, e não há corrente conservadora capaz de silenciar o barulho do nosso amor. Criar filhos não é prerrogativa de um modelo familiar único. É um ato político, afetivo, generoso. E nesse ato, aprendemos, a duras penas, que mesmo o passado – encarnado na figura de uma ex-companheira – pode ser resignificado em algo que, se não é perfeito, ao menos é honesto e humano.


Referências:

(1) IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Estatísticas de Registro Civil, vários anos. Disponível em: https://www.ibge.gov.br

(2) ABRAFH – Associação Brasileira de Famílias Homotransafetivas. Disponível em: http://abrafh.org.br/

(3) CNJ – Conselho Nacional de Justiça. Relatórios sobre casais homoafetivos e reconhecimento de filiação. Disponível em: https://www.cnj.jus.br

(4) Perel, Esther. “Mating in Captivity” (2006) e “The State of Affairs” (2017). Discussões sobre relacionamentos e comunicação, disponíveis mundialmente.

(5) STF – Supremo Tribunal Federal. Ações sobre reconhecimento de união estável entre pessoas do mesmo sexo, ADI 4277 e ADPF 132.

(6) Aliança Nacional LGBTI+. Disponível em: http://www.aliancalgbti.org.br/

(7) hooks, bell. “All About Love: New Visions” (2000). Discussões sobre amor, ética e educação afetiva.

(8) Singh, Anneliese A. “The Queer and Transgender Resilience Workbook” (2018).

Estas referências oferecem panoramas gerais sobre estatísticas, legislação e teorias de relacionamento, podendo ser consultadas como pontos de partida para aprofundar o tema no contexto específico da família LBTQ+ brasileira.