No Brasil, ser mulher trans é resistir em um contexto onde as estruturas sociais, políticas e culturais são forjadas para invisibilizar e violentar. O país, conhecido por sua diversidade e sua pluralidade cultural, carrega também o peso de liderar rankings globais de violência contra pessoas trans. Esse paradoxo reflete não apenas a hipocrisia de uma sociedade que celebra corpos trans em seu carnaval enquanto os rejeita no cotidiano, mas também a negligência histórica do Estado em garantir direitos básicos para essas populações.
Uma líder vergonhosa em violência trans
O Brasil ocupa, consistentemente, o topo da lista como o país que mais mata pessoas trans no mundo, segundo o levantamento da ONG Transgender Europe (TGEU). Em 2023, foram registrados mais de 150 assassinatos de pessoas trans, a maioria mulheres negras e em situações de vulnerabilidade extrema. Esses números não são apenas estatísticas frias: cada dado representa uma vida ceifada, um sonho interrompido, uma família desfeita.
Essa realidade está profundamente enraizada em um contexto de transfobia estrutural, alimentada por preconceitos históricos e religiosos, bem como pela falta de educação sobre diversidade sexual e de gênero. Ao mesmo tempo, a mídia reforça estereótipos que desumanizam mulheres trans, limitando-as a papéis marginalizados ou à objetificação.
Políticas públicas: avanços e retrocessos
Nos últimos anos, houve algumas iniciativas para ampliar direitos. Em 2018, o Supremo Tribunal Federal reconheceu que pessoas trans podem alterar seus nomes e gêneros nos documentos sem a necessidade de cirurgia ou laudos médicos. Esse avanço foi celebrado como uma vitória histórica. Contudo, na prática, muitas mulheres trans enfrentam barreiras burocráticas e discriminação ao tentar exercer esse direito.
No campo da saúde, programas como o Processo Transexualizador do SUS, criado em 2008, oferecem acompanhamento médico e psicológico para pessoas trans. Ainda assim, a demanda é muito maior do que a capacidade de atendimento. Filas de espera chegam a durar anos, e muitas vezes os serviços estão restritos a grandes centros urbanos, deixando a população trans de regiões periféricas e rurais sem acesso.
Em 2023, o governo federal anunciou a inclusão de pessoas trans em programas de habitação e emprego. Mas a efetividade dessas políticas depende de uma mudança cultural que ainda engatinha, especialmente em um país polarizado onde discursos de ódio encontram eco em lideranças políticas e religiosas.
Raça e classe: a dupla opressão das mulheres trans negras
Para mulheres trans negras, a opressão ganha camadas adicionais. O racismo estrutural se entrelaça à transfobia, criando um ciclo de exclusão quase intransponível. Dados da ANTRA (Associação Nacional de Travestis e Transexuais) apontam que mais de 80% das mulheres trans assassinadas no Brasil eram negras.
A maioria dessas mulheres também enfrenta a precariedade econômica desde cedo. Sem acesso a uma educação inclusiva e sem proteção contra a discriminação, muitas são expulsas de casa ainda adolescentes, obrigadas a sobreviver de trabalhos informais ou da prostituição. Dados da Pesquisa Nacional sobre o Ambiente Educacional no Brasil, realizada pela ONG Todos pela Educação, mostram que 82% das pessoas trans abandonaram os estudos devido ao bullying e à discriminação escolar.
Cultura e resistência
Apesar das adversidades, mulheres trans brasileiras têm se destacado em vários campos, da arte à política, como uma forma de resistir à opressão e afirmar sua existência. Nomes como Erica Malunguinho, primeira deputada trans eleita no Brasil, e Linn da Quebrada, cantora e atriz, inspiram uma nova geração de mulheres trans a ocuparem espaços antes inimagináveis.
No entanto, essa visibilidade também as torna alvos de críticas e ataques. A internet, embora seja um espaço de mobilização e troca, também é uma arena de violência. Campanhas de linchamento virtual e a disseminação de fake news intensificam a vulnerabilidade dessas mulheres.
O papel da sociedade civil
Organizações como a ANTRA e a Casa 1, em São Paulo, desempenham um papel crucial no acolhimento e na luta pelos direitos das pessoas trans. Essas iniciativas oferecem desde abrigo temporário até cursos profissionalizantes e atendimento psicológico, criando redes de solidariedade fundamentais para a sobrevivência e o empoderamento dessas populações.
No entanto, não é apenas responsabilidade dessas organizações carregar o fardo da inclusão. Empresas, escolas, governos e indivíduos têm um papel essencial na construção de uma sociedade mais justa. A inclusão não pode ser apenas um discurso; deve ser uma prática cotidiana.
Resistência e esperança
O Brasil está em um momento de encruzilhada. Enquanto avanços significativos foram alcançados nos últimos anos, a violência contra mulheres trans persiste como uma mancha no tecido social do país.
Combatê-la exige mais do que legislações e políticas públicas: exige uma mudança cultural profunda, que comece na educação e permeie todas as esferas da sociedade. Como disse certa vez a escritora Audre Lorde: “Eu não serei livre enquanto outra mulher for prisioneira, mesmo que as correntes dela sejam diferentes das minhas.” Essa é a lição que o Brasil precisa aprender para garantir que o futuro não seja apenas de resistência, mas também de celebração da diversidade humana.