Lá estão elas, as insubmissas. Mulheres que amaram outras mulheres em tempos que só existia silêncio ou julgamento. Muitas tiveram suas histórias apagadas, outras foram distorcidas ao ponto de parecerem heteronormativas aos olhos do presente. Mas elas existiram. Elas amaram. Elas resistiram.
Neste artigo, revisitamos as trajetórias de figuras históricas e contemporâneas que desafiaram as convenções sociais de suas épocas para viver suas verdades. De Safo de Lesbos, que imortalizou o amor entre mulheres na poesia grega, a Anne Lister, que escreveu abertamente sobre seus romances no século XIX, até as ativistas brasileiras que enfrentaram a ditadura militar e a invisibilidade no movimento feminista. É uma homenagem à coragem e à força dessas mulheres que plantaram as sementes de liberdade que hoje colhemos.
Safo de Lesbos: a musa da resistência poética
Safo, a lendária poeta da ilha de Lesbos, viveu no século VII a.C. e deixou um legado literário que ecoa até os dias de hoje. Reconhecida como uma das maiores poetas líricas da Grécia Antiga, ela escreveu sobre amor, desejo e a beleza feminina com uma profundidade que transbordava as fronteiras de sua época.
Safo e o amor entre mulheres
A poesia de Safo é um testemunho direto da intimidade entre mulheres. Embora muito de sua obra tenha se perdido ao longo dos séculos — sobrevivem apenas fragmentos —, as peças que restam deixam pouco espaço para dúvidas sobre sua paixão por outras mulheres. Em um dos poemas mais famosos, ela escreve:
“Como um doce néctar, como um sorriso divino, é o amor que sentimos uma pela outra.”
Porém, o mundo patriarcal da Antiguidade não estava preparado para aceitar uma mulher como Safo em toda a sua complexidade. Ao longo dos séculos, muitos tentaram reinterpretar sua obra para se alinhar às normas heterossexuais, tratando-a como professora de jovens mulheres ou sugerindo que sua paixão era meramente platônica.
De Lesbos ao mito moderno
O termo “lésbica” tem origem na ilha de Lesbos, local de nascimento de Safo, mas só ganhou conotação sexual no século XIX. Antes disso, a vida e obra da poeta foram alvo de intensa censura. Seus textos foram banidos ou reinterpretados por séculos de moralismos, mas sua sobrevivência cultural é um exemplo de como as histórias de mulheres lésbicas resistem, mesmo sob camadas de apagamento.
Anne Lister: a “primeira lésbica moderna”
Se Safo nos deixou poemas, Anne Lister (1791–1840) nos deu um diário — ou melhor, 27 volumes de diários codificados, nos quais ela narra sua vida como uma mulher que amava mulheres na Inglaterra do século XIX. Apelidada de “a primeira lésbica moderna”, Anne desafiou as convenções de sua época ao viver aberta (embora discretamente) seus relacionamentos.
O diário como ato de resistência
Os diários de Anne, descobertos no final do século XIX e decifrados no século XX, revelam um mundo de intimidade, amor e estratégia para viver como lésbica em uma sociedade vitoriana. Escrito em um código criado por ela, o diário narra suas paixões, encontros e desilusões, bem como suas reflexões sobre como esconder sua sexualidade enquanto se recusava a negá-la completamente.
Em 1834, Anne celebrou uma união simbólica com sua companheira Ann Walker em uma cerimônia privada em uma igreja local, um ato revolucionário em uma época em que o conceito de casamento entre pessoas do mesmo sexo sequer existia.
Reconhecimento tardio
A história de Anne permaneceu desconhecida por décadas, até que seus diários foram redescobertos e restaurados. Hoje, sua vida é celebrada na série de TV Gentleman Jack (2019), que trouxe sua história a um público global, destacando-a como uma pioneira não apenas na aceitação da sexualidade, mas também na narrativa da própria existência lésbica.
A invisibilidade lésbica no Brasil
No Brasil, a invisibilidade lésbica sempre foi agravada por um contexto patriarcal e racista que marginaliza mulheres em múltiplas camadas. Desde o período colonial até os dias atuais, as histórias de mulheres lésbicas foram apagadas ou silenciadas, muitas vezes dentro dos próprios movimentos feministas e LGBTQIA+.
As pioneiras da revista Chanacomchana
Nos anos 1980, em plena ditadura militar, um grupo de mulheres lésbicas em São Paulo fundou a Chanacomchana, uma revista feminista lésbica que buscava dar voz a uma pauta frequentemente ignorada dentro dos movimentos sociais da época. Elas enfrentaram resistência não apenas do regime opressor, mas também de aliados que não priorizavam suas lutas.
A revista discutia temas como a dupla invisibilidade de mulheres lésbicas dentro do feminismo e o machismo dentro do movimento LGBTQIA+. Apesar de sua importância histórica, a publicação foi de curta duração, refletindo as dificuldades de manter iniciativas lésbicas em um ambiente político e social hostil.
Rosely Roth e a visibilidade lésbica
Rosely Roth (1959–1990) é outro exemplo de pioneirismo lésbico no Brasil. Feminista e militante LGBTQIA+, Rosely foi uma das fundadoras do Grupo Lésbico-Feminista (GLF), o primeiro coletivo de mulheres lésbicas do Brasil, e teve um papel fundamental no debate sobre a invisibilidade lésbica durante o auge da redemocratização. Sua imagem levantando um cartaz com a frase “Somos Muitas” durante uma manifestação em 1983 se tornou um ícone da luta lésbica no Brasil.
Por que essas histórias importam?
O apagamento histórico das mulheres lésbicas não é apenas uma falha da memória coletiva; é uma estratégia de silenciamento. Ao revisitar e celebrar figuras como Safo, Anne Lister, Rosely Roth e tantas outras, reconhecemos que a luta por visibilidade não começou ontem. É um legado de resistência que se constrói em cada poema, diário, protesto ou publicação.
Porque o passado é o chão onde pisamos, e as insubmissas — aquelas que amaram, lutaram e se recusaram a ser apagadas — nos mostram que viver nossa verdade é, sempre foi, e sempre será um ato revolucionário.