Negra, lésbica, mãe, guerreira e poeta: um corpo político

Em 18 de fevereiro de 1934, nascia Audre Lorde. A mulher que fazia questão de demarcar muito bem quem era. Para ela, cada demarcador social que portava em seu corpo se constituía como um eu político. Sua obra é de uma importância tremenda, pois parte de si mesma para gerar um pensamento feminista negro e lésbico. Em Zami: A New Spelling of My Name (1982), a qual classificou como uma biomitografia, narra sua própria trajetória a partir de mitos africanos, afro-caribenhos e, literalmente, seus sonhos. O próprio termo zami reflete a visão muito presente em suas obras do que seria a lesbianidade. Para além da atração sexual entre mulheres, Audre Lorde descrevia a lesbianidade como o ato de amar outra mulher. De maneira geral, Zami significa “mulheres que estão juntas como amigas e amantes”. O momento em que inicia a sua trajetória de escrita poética também deve ser negritado. Em uma das gravações de áudio que realizava, Lorde conta que ser negra e lésbica na década de 50 era estar sozinha. Não apenas no sentido afetivo, mas de não se encontrar em nenhum dos espaços que frequentava na cena LGBT estadunidense, dos espaços acadêmicos que ocupava e até mesmo em seu próprio bairro.

Nos movimentos sociais não era diferente dos outros espaços em que precisava lidar com as opressões. Em um de seus principais textos chamado ‘Não existe hierarquia de opressão’, a autora nos leva a reflexão de como nossos muitos ‘eus’ interferem em nossos espaços sociais. Como — por exemplo — dentro do movimento negro, as mulheres costumam vivenciar experiências sexistas e dentro do movimento feministas, mulheres negras vivenciam o racismo. Além disso, Audre Lorde trabalha recorrentemente a questão da diferença. O reconhecimento das diferenças é um passo central, em sua teoria, para o combate das opressões, com a demarcação do ser lésbica dentro da comunidade negra; ser negra dentro da comunidade lésbica; ser mulher dentro do movimento negro, etc.

Em meio a tudo isso, a obra de Audre Lorde nos fala principalmente de resistência e de sobrevivência. Para ela, o ato de escrever sempre esteve ligado a sobrevivência, como diz em seu poema ‘A Litany of Survival’: “Pra todas nós,
este instante e esta glória. Não esperavam que sobrevivêssemos”. No texto Audre’s Voices, Alice Walker afirma que a obra de Lorde vem ensinando gerações sobre o amor próprio e sobre o amor entre mulheres negras e como utilizou a literatura para que não caísse no abismo da morte, tanto física, com os seus anos de luta contra o câncer, quanto social marcado pelo racismo e a lesbofobia. Em seus poemas, Lorde traz humanização para mulheres negras ao falar de afetividade, do cotidiano e dos seus anseios. Além de sempre incentivar outras mulheres a escreverem sobre suas vivências e romperem com o silêncio.

O fato de estarmos aqui e que eu esteja dizendo essas palavras, já é uma tentativa de quebrar o silêncio e estender uma ponte sobre nossas diferenças, porque não são as diferenças que nos imobilizam, mas o silêncio. E restam tantos silêncios para romper!

(A Transformação do silêncio em linguagem e ação)

Se o lema do feminismo negro é “nossos passos vêm de longe”, então não podemos deixar que a obra de Audre Lorde caia no esquecimento. Ao ler seus textos tenho o sentimento de acolhimento, mesmo que tenhamos vivido em épocas e territórios diferentes, as vivências de Audre ainda se entrecruzam com as de milhares de lésbicas negras que vivem numa constante posição de não-lugar na sociedade. O reconhecimento e aceitação das nossas próprias diferenças é um dos mais importantes atos de resistência para nós — mulheres negras. bell hooks em Lorde: The Imagination of Justice fala sobre a importância de se celebrar a força do movimento feminista em tempos de fascismo e de ataques às mulheres, principalmente, mulheres negras. Dessa forma, trazer o pensamento de Audre Lorde para debate é urgente. Ainda que haja grandes limitações como o pequeno número de textos traduzidos e/ou títulos publicados no Brasil. É urgente que comecemos a ler mulheres negras lésbicas e que busquemos romper com o nosso próprio silêncio também.

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