Aos 44 anos, poucas coisas me definem. Sapatão é o único rótulo que eu visto!

Aqui estou. Quando pensei em escrever, e a minha cabeça rodopiou por temas concretos, pautas, artigos, direitos, lutas políticas, pensamentos estruturados, minhas mãos não conseguiram parar em nenhum lugar. E a escrita é o lugar que vem de dentro, e reverbera no suor das mãos trêmulas. Escrever um começo, mas por onde se começa? Aonde principia uma trajetória? Resolvi começar por mim.

Poucas coisas me definem, no alto dos meus 44 anos. Pois é, sou uma sapatão cis madura. 44, esse número quase mágico para nós. Acho que combina começar assim. E esse nome, esse rótulo, SA-PA-TÃO é, talvez, um dos únicos que eu visto, nesse mar de coisas que eu não sei dizer ao certo quando começo a falar de mim. Sou mãe, sou esposa, sou professora universitária, tenho muitos gostos e ativismos, afazeres e paixões, mas vou começar por aqui: vestindo uma camiseta branca com letras roxas em caixa alta: “Eu não sei você, mas eu sou sapatão”.

Mas, porque essa afirmação tanto me cabe? Talvez porque ela tenha sido meu porto de chegada. Um lugar que me veio depois de tanto mar e tanta terra, tantos trajetos e descobertas da minha sexualidade, dos meus afetos, e de mim mesma. Não vou traçar conceitos ou discutir marcos teóricos, não agora. Ser sapatão é amar mulheres, e pra mim é mais que amor, também: é um marco revolucionário.

44, vocês imaginam como foi minha adolescência, 30 anos atrás. Não tínhamos referências, a hetercisnormatividade era ainda mais agressiva: não se falava sobre, não se podia aventar a possibilidade de uma mulher amar e se relacionar sexual e afetivamente com outras mulheres. Tinham signos, cortes de cabelos, trejeitos, onde as mulheres lésbicas se escondiam. Por azar ou destino, eu não tinha acesso a nenhuma delas. Lembro de comentários maldosos, risos, lesbofobias, conversas dos adultos quando apontavam uma de nós, lá nos idos dos anos 80, entrando nos 90. Era interditado. A gente tinha que crescer e arrumar um “namorado”, era uma ordem.

Eu, sagitarianíssima, Sol e Lua e mais 3 planetas em sagitário, fui uma adolescente afrontosa, baladeira, comecei a beber cedo, e o “namorado” veio mesmo bem mais tarde, lá pelos 20 e tantos, quando começavam a dizer: tem algo errado com essa menina que nunca namora. Eu era boêmia, e ainda sou. Milhões de amigues, solteirice deliciosa. Por mais que encontrasse olhares e vontades, eu era presa na heterocisnorma. Tinha medo, por mais corajosa que eu fosse. Namorei homens. Engravidei aos 29 anos. Aí é onde muitos vão dizer: ah, então você não é sapatão, não. Deve ser bissexual. Sei que não tenho que me explicar ou dizer e eu conto a minha história apenas pra reforçar meu orgulho da trajetória: a gente se descobre de muitos jeitos.

Eu não odiava os homens, não era algo que me feria todos os dias. Mas faltava. Faltava um brilho, faltava desejo, faltava paixão de saltar os olhos. Era como viver com aquilo pouco que é possível, melhor se acostumar. Não achava o sexo isso tudo que diziam, por mais que me esforçasse eu pensava: vocês valorizam demais isso aí. E eu me deixava ser amiga-moleca, um tanto mãe, mas insatisfeita. Parei de pensar no assunto. Foquei no meu trabalho, terminei o mestrado, entrei no doutorado, muitas coisas me preenchiam e eu tinha medo de romper com o conhecido esperado da minha suposta heterossexualidade. Bom, até que.

Eu já era adulta, tinha um filho de 2 anos. Me apaixonei por uma mulher, de novo. A primeira eu fugi, não ousei sequer dizer a palavra, depois do primeiro beijo. Corri de mim mesma.  Corri tanto, que mergulhei em crises de pânico e ansiedade, que voltaram quando eu não pude mais deixar de dizer pra mim mesma a verdade: estou apaixonada por uma mulher. Socorro. O que eu faço? Como? Como eu rompo com tudo isso que esperam de mim? Como eu me permito? Eu não sabia. Mas tinha uma pergunta guia: onde se guarda o desejo que não se vive? Eu estava doente. E sabia que se eu não vivesse meu desejo, não encontraria vazão pra tanta água. E eu ia adoecer de novo.

Não foi fácil, mas foi tão bonito. Porque eu consegui atravessar esse mar revolto dentro de mim mesma. A travessia não foi fácil, mas foi aonde eu aprendi a confiar em mim. E onde eu me permiti ser vento, brisa, água salgada, correnteza, maré cheia. Teve muito frio e muito caldo, pesadelos, medos, tempestades onde eu achei que não pisaria de novo em terra firme. Mas aqui estou. Levei a criança comigo, que desde sempre aprendeu que a mamãe tinha uma namorada. Nos demos as mãos e ele sempre foi meu fiel escudeiro, meu menino presente, meu amigo.

Bom, a primeira paixão se foi, e eu aprendi que ser sapatão é passar por muitos dramas. Vieram muitas outras namoradas, paixonites, ficantes, histórias. Eu comecei a brilhar, eu estava viva. Era como me sentia: viva. E os homens? Nunca mais consegui. Teve ainda um tempo que tentei, logo no começo, mas quanto mais eu vivia as mulheres, os homens se tornavam um passado distante para o qual eu não conseguia voltar. E eu nem queria. Não fazia o menor sentido e a minha sexualidade passou a ser algo que me dava prazer, e eu podia, agora sentir prazer! Eu descobri o que é ser mulher, com outra mulher. E eu não tinha dúvidas: eu desejo mulheres, e só mulheres. Não cabe no meu corpo, no meu coração, no meu pulsar de vida, outra possibilidade. Depois de tudo que vivi, esse lugar é uma conquista. É meu lugar. Um lugar sapatão. E eu só agradeço ter conseguido chegar até aqui.

Em 2019 eu casei, de papel passado e tudo. Dani foi um presente de amor que chegou depois dos 40. Um presente que eu recebi com todo amor do mundo. Agora, posso dizer, estou onde quero estar. Agora faz sentido falar em casamento, faz sentido tudo que diziam sobre sexo: é realmente tudo isso e ainda mais. A minha lesbianidade me forma e me significa, e é estranho porque parece que nunca existiu outro lugar. O meu presente é uma conquista.

Sapatão, muito prazer.

Sagitariana, casada, mãe do Be.

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