Um passo para frente, outro para trás – é assim que caminha a legalização do aborto, uma das mais incipientes polêmicas atuais, no tocante à saúde pública e ao feminismo. Há mais ou menos um mês foi aprovada uma portaria que incluía o aborto legal na lista de procedimentos executados pelo SUS, o que significaria um avanço nas políticas de prevenção de morte de gestantes e de maus tratos e abandono de crianças no Brasil, caso a mesma portaria não tivesse sido revogada dias depois da sua publicação. Se a revogação não tivesse acontecido, poderíamos esperar que pelo menos um milhão de mulheres por ano (Terra) logo teriam seu direito à interrupção segura da gravidez garantido, sendo que, dentre elas, figurariam muitas que não podem e nunca poderão pagar por um aborto em uma clínica e o fazem tomando chás absurdos e enfiando agulhas de crochê na vagina.
O que isso tem a ver com meritocracia? Bom, não sei se conseguirei explicar de forma clara o suficiente, porque essa reflexão é fruto de uma das minhas muitas viagens, mas tentarei. Meritocracia é a predominância do mérito sobre qualquer outro critério de seleção na sociedade, ou seja, é conseguir as coisas por “merecimento”. O vestibular é um dos exemplos mais claros de meritocracia em que consigo pensar, porque seleciona, da forma mais injusta possível, as pessoas que “merecem”, o que não significa exatamente aqueles que estudaram, mas sim os que tiveram oportunidade de pagar uma escola particular, geralmente das mais caras. Nessa conta também entram alguns transtornos psiquiátricos – por exemplo, entre dois adolescentes que estudam numa escola particular de elite, na mesma sala, sendo que uma tem transtorno de déficit de atenção e hiperatividade e a outra não, qual delas tem mais chances de passar no vestibular? – e vários outros problemas, inclusive os familiares, o que torna a meritocracia uma ideologia muito, mas muito furada. Afinal, como quantificar o merecimento? E os fatores que não são considerados na hora de fazer essa conta? Como ter tanta certeza de que alguém não merece certo cargo sem acompanhar de perto seu cotidiano, seus dramas e suas alegrias?
Apesar de todos esses furos, a ideologia meritocrática é comprada por muita gente, como o próprio vestibular ilustra. Já vi muito vestibulando defender esse tipo de prova como algo ideal para selecionar quem entra e quem não entra em uma universidade, por mais pública que ela alegue ser (um beijo para a FUVEST!). Outro exemplo muito claro é o problema do desemprego. Quantas vezes eu já ouvi – e sei que não vou parar de ouvir… – gente dizendo, sobre pessoas pobres, que, “se tomassem vergonha na cara”, ou “se não fossem tão preguiçosos”, ou “se não ficassem tentando escolher o que fazer (!!!!!), teriam um emprego”. É bastante óbvio que quem diz isso não tem noção nenhuma do que é não ter oportunidade para sair de uma situação. Ninguém é pobre porque gosta, muito menos porque quer, e sim porque o sistema não deu oportunidades para que essas pessoas se desenvolvessem financeiramente. Os pobres sustentam o sistema, mas não cabem nele, e a forma de pensar meritocrática é um bom meio de dar conta dessa contradição: o que os pobres “merecem”, por sua falta de vontade de trabalhar, é limpar o meu lixo, lavar os meus copos, fazer a minha comida, limpar a bunda dos meus filhos (ironicamente, tarefas muito desgastantes). Seguindo a mesma ideia, uma mulher pobre, que não mereceu a informação suficiente para acessar camisinha e pílula anticoncepcional, ou que não mereceu o dinheiro de que precisava para comprar a pílula do dia seguinte, merece ter um filho ou morrer tentando se livrar dele. Ela também não tem dinheiro para subornar o ginecologista ou comprar Citotec, como muitas adolescentes de classe média e alta fazem, então, tudo o que pode fazer é tomar aquele chazinho de abacaxi, se jogar da escada, enfiar agulha na vagina, entre outras formas tão ou mais brutais de abortar uma criança e que matam quase 12 vezes mais, no Brasil, do que ataques de pitbull matam nos EUA (ZH Notícias). E ainda querem matar os pitbulls.
Achar que qualquer mulher poderia ter evitado a sua gravidez é não só uma atitude ingênua como meritocrática e, portanto, injusta. Além dos casos em que o método anticoncepcional falhou – mesmo a camisinha tem entre 88% e 97% de eficácia -, existem aqueles em que a gravidez não poderia ter sido evitada por uma miríade de outros motivos. Não cabe a mim, e nem a você, julgar os motivos de qualquer mulher para cometer um aborto. E nem para comer um bolo – mas de gordofobia eu falarei no futuro.