10 pistas de como pessoas cis podem ajudar a combater a transfobia
Escrevi esse texto em janeiro, pensando em aproveitar o gancho do 29/1 e fazer o conteúdo circular, mas à época, ainda questionando se era ou não cis, achei que não tinha sentido disputar engajamento com as pessoas que de fato devem protagonizar esse dia. Mas hoje, conciliade com minha identidade de gênero não binária, e considerando que todos os dias são de luta contra a violência, aqui vai minha breve contribuição.
A transfobia é uma realidade no Brasil. Seguimos sendo o país que mais mata pessoas trans no mundo (LGBTs em geral, mas as T lideram de longe essa lista pavorosa). Então aqui tem algumas pistas do que as pessoas cis interessadas em contribuir para cessar essa violência perversa podem fazer consigo e com os seus para que as mortes parem e as pessoas trans tenham acesso aos seus direitos e uma vida digna, de qualidade e longeva.
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A transfobia tortura e mata pessoas trans todos os dias no mundo inteiro e fazer algo para mudar esse cenário não pode ser tarefa somente das pessoas trans. Pessoas cis aliadas da luta trans têm obrigação de atuarem ativamente pra eliminar a transfobia da nossa sociedade. Abaixo listamos algumas atitudes e posturas que você pode ter para advogar a favor da causa trans sem silenciar, se omitir ou roubar o protagonismo do rolê.
1. Se movimente
Essa coisa toda de lugar de fala acabou virando um grande subterfúgio para algumas pessoas justificarem sua inércia diante das opressões. Se você pensa coisas como “ah mas o que eu posso fazer se esse não é o meu lugar de fala”, sinto dizer, você não entendeu nada sobre o que é lugar de fala e está se omitindo.
Como nos ensina Angela Davis, na nossa sociedade estruturalmente racista, não basta não ser racista. É preciso ser antirracista! Existe uma analogia que diz que o racismo é um cachorro da branquitude, e cabe a ela garantir que ele não vai morder ninguém (fala de personagem da série Dear White People). E isso vale para todas as opressões. A cada dez assassinatos de pessoas trans no mundo, quatro são no Brasil! A transfobia é uma ação da cisgeneridade, então vos cabe, como grupo, não perpetuar. Ou seja, para colaborar com a eliminação da transfobia, não basta não cometer, é preciso interferir para que outras pessoas também parem de violentar pessoas trans e de rejeitar a transgeneridade e a não binariedade.
Esse item se conecta diretamente com o segundo, que é:
2. Não fale pelas pessoas trans, e não deixe de falar por você
O truque para não atravessar o lugar de fala de ninguém é não falar pela pessoa. Isso parece que todo mundo entendeu. Melhor engajar a fala de uma pessoa trans, que tem muito mais propriedade para falar sobre o assunto do que você. Mas, na ausência de uma pessoa trans, é dever das pessoas aliadas trazer e defender a pauta. E ao presenciar uma fala, atitude, situação de transfobia, se levante, defenda a transgeneridade. Estude, tenha letramento de gênero para rebater falas e atitudes criminosas com propriedade. E tem outra: uma pessoa cis vai dar muito mais ouvidos para outra pessoa cis do que para uma pessoa trans, ou seja, existe essa legitimidade social cis para falar sobre a pauta e deve-se usar isso e tirar esse peso de educar a cisgeneridade das costas das pessoas trans, que já estão ocupadas em sobreviver à transfobia (e isso dá bastante trabalho). Viu uma pessoa trans sendo impedida de usar o banheiro que ela quiser? Interfira! Não silencie diante da violência porque omissão é conivência e apoio.
3. Respeite os pronomes e se esforce para usar linguagem neutra de gênero
Parece uma tarefa muito simples tratar as pessoas da forma como elas querem ser tratadas. Na dúvida, ao interagir com alguém sem ter certeza do gênero, pergunte com quais pronomes ela quer ser tratada. Perguntas respeitosas e honestas vão ser bem recebidas. Também é importante usar linguagem neutra ao se comunicar com grupos. Lembrando que usar dois gêneros na construção das frases, como em para elas e eles, não é suficiente porque não existem apenas dois gêneros e isso invisibiliza a nós, pessoas não binárias.
Nosso idioma é bastante rico, e podemos nos esforçar um pouco para encontrar palavras e construir frases neutras, usando a palavra pessoas antes do adjetivo, por exemplo, ou ainda usando os neologismos neutros das palavras binárias com a terminação E ou U (menines, elus). Dá um pouco de trabalho, mas funciona, e é importante entender que esse esforço é mínimo diante da diferença que essa comunicação respeitosa faz. Em tempos da fake news da ideologia de gênero, em que se usa a preservação do idioma como argumento para barrar que se fale e eduque sobre gênero, é importante a gente popularizar o uso da linguagem neutra tanto com palavras que já existem no idioma quanto com neologismos que tenham impacto real, principalmente na língua falada.
Lembrando que usar @ e X não causa impacto real no idioma, principalmente, pq são palavras que não podem ser pronunciadas.
4. Contrate pessoas trans e incentive sua permanência
90% da população trans está na prostituição. 50% das pessoas trans não concluíram o ensino fundamental, e sobe pra mais de 70% as que não finalizaram os três anos do médio. Isso, junto com a discriminação, afasta as pessoas trans do mercado de trabalho formal e consequentemente de benefícios e direitos trabalhistas e obviamente as empurra para a marginalidade. Você já viu uma travesti trabalhando na farmácia do seu bairro? Da sua rotina participam travestis à luz do dia, fora das esquinas? Uma grande atitude transaliada é contratar pessoas trans, mas organizar a sua empresa para receber essas pessoas, oferecendo letramento de gênero para a equipe (inclusive, podem me contratar que eu faço esse serviço!), além de considerar preparar a pessoa trans para desempenhar melhor o seu papel, investindo em treinamento e educação, sem esperar que ela venha pronta. Não tenha dúvida de que os ganhos para a sua empresa serão imensos.
5. Não meça com sua régua
Isso vale pra vida! As existências e formas de ser e estar no mundo são múltiplas. Precisamos exercitar a nossa alteridade, que é a capacidade de entender a outra pessoa, encontrar e celebrar nossos pontos em comum, enxergar o que há nela que é diferente de mim e encontrar formas de me relacionar com essa diferença de maneira respeitosa e receber os ganhos de conviver com a pluralidade.
Essa postura diante das pessoas nos ajuda a não exotificar, não objetificar, não cometer indelicadezas, e a não esperar que todes sejam iguais a nós. Garante ver a outra pessoa como humana, sem nos colocar como padrão único, mas saber que nossa existência é somente mais uma das possibilidades do ser humano. Não espere atitudes que você teria, não compare com o que você acha certo, se abra para o que não faz sentido para você, pq você não é o parâmetro de certo e errado, mas só mais uma possibilidade. O mundo tem sete bilhões de pessoas. Acreditar que o seu modo de vida é o único certo é bastante arrogante, não acha?
E esse tópico vale um sub-tópico, que é:
5.1 Abandone o binarismo de gênero e não imponha o que é coerente para você.
Uma mulher trans não é menos mulher se decidir usar barba, ou se não quiser colocar silicone. Os signos e comportamentos que definem o que é feminino e o que é masculino são armadilhas da própria cisgeneridade. Muitas pessoas cis e heterossexuais, inclusive, não correspondem ao comportamento, estética e performance do que é esperado de homens e mulheres e não são deslegitimadas quanto ao seu gênero por isso. As pessoas trans não precisam corresponder às expectativas da cisgeneridade para terem sua existência respeitada. A transgeneridade é justamente a recusa da cisgeneridade. Não faz sentido esperar que ela continue se encaixando nos moldes do que a cisgeneridade reconhece como legítimos. Bora abandonar as pré concepções, estudar e escutar.
6. Não endosse transfobia
Não compartilhe transfobia (nem se for pra criticar), não defenda transfobia, não tente explicar o suposto mal entendido, não passe pano para transfobia nem se for do seu parceiro, não compre da marca, não vá ao evento, não consuma. Um boicote amplo fala a linguagem do dinheiro e é bastante eficiente. Seja firme com suas pessoas se elas forem transfóbicas. É sua obrigação como aliade.
7. Faça o teste do pescoço
Mais uma tecnologia da luta antirracista que pode ser transportada para o combate à transfobia, é o teste do pescoço. A ideia é esticar o pescoço pra dentro de um espaço e perceber a presença de pessoas trans, principalmente os espaços simbólicos de poder, e questionar. É uma boa ideia usar o constrangimento pedagógico como tática ao confirmar a ausência de pessoas trans para demarcar como isso é grave. É preciso demonstrar o quanto estamos mergulhades em transfobia estrutural quando circular em lugares que excluem pessoas trans não causa incômodo.
8. Conviva com pessoas trans. Ame pessoas trans
As pessoas trans não precisam do amor das pessoas cis porque podem se auto amar e amar-se entre si. O amor transcentrado existe e é revolucionário. Posto isso, é importante pensar que é preciso aplicar o teste do pescoço em nossas vidas. Você convive com pessoas trans? Consegue pensar em quantas pessoas trans estão presentes na sua rotina? Você já trocou afeto com pessoas trans? Tem alguma pessoa trans perto de você, por quem você nutre admiração? Alguma pessoa trans frequenta sua vida, é convidada pras suas festas, pro seu churrasco, pra sua resenha?
Essas perguntas são provocações em busca de desencadear uma auto análise que permita entender qual o lugar que as pessoas trans ocupam no imaginário e na prática de cada um. Mais uma vez nos aproximando das estratégias da luta antirracista, precisamos combater o imaginário de que o transfóbico é o outro. Todo mundo conhece um transfóbico, mas ninguém reconhece a própria transfobia.
9. Reconheça seus privilégios e considere abrir mão deles
A info importante aqui é: em uma sociedade estruturalmente transfóbica, toda pessoa cis é transfóbica porque colhe os benefícios da transfobia. Abrir mão dos seus privilégios diante das pessoas trans é uma das atitudes mais difíceis, e é exatamente onde precisamos chegar urgentemente. Você pessoa cis abriria mão de uma vaga de emprego em que uma pessoa trans era a melhor candidata, mas você como segunda melhor, foi escolhida no lugar dela por ser cis? É na direção do sim que precisamos caminhar. É um desafio, sabemos, mas é preciso encarar.
10. Use seu conhecimento em outras pautas sociais para fazer analogias e conseguir ter mais empatia
As opressões são múltiplas e atravessam diferentes corpos de maneiras diferentes. E a gente consegue estabelecer empatia se conseguir fazer analogias com a transfobia e alguma opressão a que somos submetides ou que temos mais conhecimento. A transfobia é muito parecida com o racismo ao desumanizar os corpos trans para justificar sua eliminação, assim como é parecida com o machismo pela subalternização, ao fazer crer que as pessoas trans são menos pessoas do que as cis. Então, como pessoas cis LGB ou racializadas, por exemplo, é possível se solidarizar com as pessoas trans a partir das próprias experiências com outras opressões estruturais. É possível construir pontes em vez de muros. Mas entenda que esse é um exercício de aproximação. Não significa que, se você sofre outra opressão, pode dizer sobre o que as pessoas trans vivem. Entendem a sutileza?
Temos certeza absoluta de que a eliminação da transfobia não será alcançada se essa demanda for vista como pauta pessoal. Precisamos de políticas públicas de inclusão e combate à discriminação. Mas precisamos, também, de modificação da consciência coletiva, e isso passa pelas pessoas e suas redes. Acreditamos que essa é uma lista em constante atualização, e todas as pessoas engajadas em acabar com a transfobia podem criar estratégias de combater essa perversidade. Então convido a todes para construirmos juntes. A luta contra a transfobia deve ser uma tarefa de todas as pessoas. Isso faz sentido pra você? Compartilhe conosco.
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