Quando falamos de afeto, existe uma linha que separa o meu corpo de mulher trans/travesti das mulheres cisgênero para a grande maioria das pessoas. Esse marco é contorno de grandes violências em minha vivência. O amor é capaz de tornar-se uma arma apontada a meu corpo; que me gera medo, ansiedade e atinge profundamente a minha autoestima.
Ações explícitas ou, às vezes, implícitas me afirmam a possibilidade do meu corpo servir enquanto prazer sexual ou fetiche; porém, dificilmente como sujeito a perceber atitudes, digamos, comuns dentro do padrão afetivo, considerado como o ideal capaz de nos aproximar e construir laços. Território onde colocamos, por exemplo, realizações pessoais, sentimentos, sonhos, alívios, enfim; mas parece que isso não me é acessível.
Existe uma condição de solidão ao corpo trans mantida por um comportamento social não questionado, em razão de um grau de impossibilidade que a vivência T tem diante da estrutura cisnormativa. Quais corpos podem participar da dança dos afetos?
Me interpelam sobre qual o pronome correto para se referir a mim, por exemplo; e isso me diz apenas quão rasos estamos na discussão da vida trans e travesti. As pessoas não conseguem entender a lógica de que eu posso ser uma mulher — o que automaticamente geraria o conhecimento de qual pronome usar. Elas não me enxergam; elas me vigiam e buscam constantemente as incoerências em meu corpo que permitam a ela questionar o meu lugar de pertencimento anunciado por mim mesma.
Estamos em uma sociedade onde eu não sou pensada para ocupar determinados espaços porque nem sequer sou uma possibilidade de existência. Ao ocupar espaços comuns torno-me tal qual uma alienígena, um corpo em órbita aos parâmetros argumentados dentro do aspecto biológico. Ou seja, me olham mas não me veem porque não possuem repertório além da binariedade cisnormativa, e meu corpo se torna um alvo.
Isso se exprime até nas entrelinhas. Por exemplo: apesar de em determinados grupos sermos capazes de dizer “mulheres trans são mulheres”, ainda assim não somos recepcionadas nos afetos desse grupo. Em outras palavras, apesar de no campo político afirmarmos que mulheres trans ocupam a mulheridade, no campo dos afetos parece que essa consciência ainda não chegou, porque no íntimo, no campo da aproximação amorosa, nós ainda não conquistamos o espaço que nos anunciaram pertencer.
Por isso digo que a política do amor é violenta a nossos corpos; e o contraste reside no mesmo instituto ser a grande poesia da vivência cis. O que para eles é combustível para as suas criações e institutos (casamento, herança, maternidade/paternidade) enquanto sociedade; para nós é argumento que sustenta a nossa solidão. Dói sentir que não somos assumidas, não há um desejo de cuidado com nossos corpos, não somos vistas como pessoas portadoras de sentimentos e que estamos feridas.
Por exemplo: quantas pessoas cis você já viu beijar ou andar de mãos dadas com uma mulher trans e/ou travestis em público? Quantas você conhece que assumem namoradas travestigêneres? Quantas pessoas você convive cita os corpos trans e/ou travestis enquanto uma uma possibilidade afetiva?
Questionar isso é forma de fazer quem lê esse texto reconhecer que a nossa solidão é estruturalmente construída e mantida por uma condição impositiva. Somos tidas, mantidas e permitidas apenas enquanto o que se esconde; o que nem sequer aborda-se entre amigos; aquelas que em silêncio podem satisfazer desejos carnais, mas não atendidas em seus afetos.
Me alertam de imediato no primeiro encontro de que não estão em busca de relacionamento (embora muitos tenham assumido relacionamentos com mulheres cis após ou durante); se afastam para olhar meu corpo em tom de curiosidade; fazem da minha genitália um desconforto fruto da curiosidade exotificadora deles.
Em minha experiência com os homens cisgênero, sinto que sou negada a todo custo e o máximo possível. Me alertam de imediato no primeiro encontro de que não estão em busca de relacionamento (embora muitos tenham assumido relacionamentos com mulheres cis após ou durante); se afastam para olhar meu corpo em tom de curiosidade; fazem da minha genitália um desconforto fruto da curiosidade exotificadora deles. Especialmente eles temem dizer que se sentem atraídos, envolvidos e apaixonados por nós.
Dentro da cultura machista a qual fazem parte em um pacto de manutenção de privilégios, todos eles, como bem destaca Renata Carvalho, diretora e transpóloga, sabem da transfobia latente que existe e exatamente por isso se negam à construção de laços com esses corpos, pois isso demandaria que eles se submetessem à violência imposta ao meu corpo.
Se tudo eles têm, por que eles abdicariam? Ser o companheiro de uma mulher trans implica no compartilhamento de uma vivência de constrangimentos; logo, causa-se rachaduras dentro do paraíso masculino que eles não são capazes, ou não estão dispostos a enfrentar — porque não precisam.
Só para provocar: quem é capaz de constranger o homem branco-cis-hétero?
Em minha experiência com mulheres, especialmente a cis, vivi uma constante colocação do meu corpo no campo masculinizado nas entrelinhas do sexo. Me colocar em posição x, me fazer automaticamente ativa, esperar um comportamento mais dito masculino numa relação heterossexual padrão.
Esse tipo de comunicação implícita é uma outra forma de opressão, que sustenta mais uma vez dento da gente a posição de solidão a que nós nos sentimos presas diariamente. Será que eu serei amada? Cuidada? Respeitada? Assumida? Parece tudo longe demais.
Enfim, todes já cometeram ou presenciariam — o que também os responsabiliza em algum grau — falas ou atitudes transfóbicas em nosso recorte temporal; seja em família, rodas de amigos ou meramente conhecidos, especialmente as cis-masculinocentradas.
Essa é a prova de que eu dizer as violências que o corpo trans e travesti sofre não é novidade para o universo cisgênero. A transfobia em si não é uma surpresa. As pessoas têm uma ideia do que pessoas trans passam; o que elas não sabem muitas vezes é a extensão do que passamos pois naturalizou-se a violência contra nossos corpos em grau tal, que parece ser o comum o que estão acostumados a ver.
para a cisgeneridade eu sou, historicamente, estruturalmente, institucionalmente e afetivamente, posta como inferior.
Com isso, o que acredito ser possível constatar é que: para a cisgeneridade eu sou, historicamente, estruturalmente, institucionalmente e afetivamente, posta como inferior.
Estou colocada nesse lugar há tanto tempo. Tempo suficiente para fazer das pessoas incapazes de pensar a realidade de outra forma. Sou vista como alguém sem opção; alguém que aceita qualquer coisa; a disponível; a que está para servir por pouco; a que aceita migalha porque de todo resto é negada, não tem e nem terá acesso porque acredita-se que essa é a regra.
Lembro-me de uma frase que ouvi em algumas rodas de conversa, algo próximo a: “você beijaria/transaria com uma mulher trans/travesti?”
Esse questionamento expõe a posição de superioridade que a cisgeneridade se coloca diante de nós; aquelas que não possuem escolha, vontade ou opção; que estão no aguardo de serem concedidas a oportunidade misericordiosa dos cis que pode vir a aceitar o nosso corpo se estivermos dentro de padrões estéticos impostos pela visão deles.
Isso tudo está centrado na lógica da aceitação ou tolerância de nossos corpos. E como bem provoca a atriz Dominique Jackson, essas construções pressupõem a ideia de que estamos em um patamar abaixo de outro ser humano, e nós deveríamos ser iguais; pois caso contrário existe uma crença de que algumas pessoas (cis) são melhores que outras e, por isso, a elas é dado o poder de aceitar ou não.
Aceitar de que? Para que? O que querem dizer com esse poder sobre mim? Me parece explícito também nessa lógica que, o que se diz afinal, é que o mundo é pensado para a cisgeneridade e, se nós quisermos entrar, teremos, portanto, que ser aceitas.
Se queremos ser amadas, deveremos contar com a benevolência dos 15 minutos de sexo e nomear isso de afeto. Acho que não.
O que quero saber com esse texto é: uma mulher trans/travesti te beijaria?
Chega dessa posição de inferioridade. Nós a aceitamos muitas vezes em decorrência da estrutura de solidão criada e imposta pela própria cisgeneridade.
Num mundo onde mulheres travestigêneres possuem escolha, são pensadas como possíveis, ocupam cargos e posições sociais de relevância; não há mais espaço para o comportamento de condenação sobre nossos corpos — esse tempo está a caminho, esse mundo está em construção, e só vamos considerar esse projeto finalizado quando todas nós tivermos acesso a ele.
Uma travesti de beijaria? Te assumiria? Te namoraria? Te apresentaria para a família e amigos? Contaria a história de vocês? O que você responde a essa pergunta? Talvez não.
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