Quando falamos de sexo entre mulheres que já atravessaram algumas décadas de vida, o assunto ainda é envolto em um silêncio desconfortável, como se a maturidade não pudesse também significar uma etapa de plenitude sexual. Pesa sobre esses corpos uma carga de invisibilidade, mitos e preconceitos, como se o desejo não pudesse seguir vivo e vibrante, ainda que as rugas, as transformações hormonais e as responsabilidades da vida adulta tenham deixado suas marcas. O tema, porém, merece luz: há entre nós quem redescubra o próprio prazer muito além da juventude, e isso não é só possível, é revolucionário.
A sociedade parece acreditar que, com o passar dos anos, a mulher deveria se “aposentar” do erotismo. Esse mito — com raízes em preconceitos de gênero, raça e também de origem social — é cruel. Ele apaga as experiências de quem ousa sentir, desejar e viver a sexualidade para além do que a cultura do “eterno jovem” considera aceitável. O Brasil, como demonstram dados do IBGE, está envelhecendo (1). Cada vez mais pessoas chegam aos 50, 60, 70 anos, e muitas dessas vidas são marcadas por trajetórias complexas: nem sempre tiveram espaço ou liberdade para explorar o desejo na juventude. Agora, diante do espelho, se perguntam: “E se o meu corpo ainda puder me surpreender?”
A invisibilidade social em torno do erotismo maduro impede que se discutam as particularidades do sexo entre mulheres nessa fase da vida. Uma das camadas mais espessas desse silêncio é a ausência de representações positivas de quem vive a sexualidade fora da norma heterocentrada, cisnormativa e juvenil. Estamos falando de afetos que fogem aos padrões, de sabores que não se limitam a scripts convencionais, de corpos que trazem memórias históricas de opressão, mas também de resistência. Nessa encruzilhada, não há espaço para ingenuidade: o erotismo se torna uma potência política, um ato de afirmação.
Corpos maduros, corpos potentes
A menopausa costuma chegar entre os 45 e 55 anos, trazendo transformações fisiológicas importantes: diminuição de estrogênio, mudanças na pele, ressecamento vaginal, ondas de calor. Especialistas da North American Menopause Society (NAMS) lembram que alterações hormonais podem afetar a libido e a resposta sexual, mas não sentenciam o fim do prazer (2). Ao contrário, com informação e, se necessário, auxílio médico, muitas mulheres encontram novas formas de sentir. No Brasil, o Programa de Estudos em Sexualidade da USP (ProSex), coordenado pela Dra. Carmita Abdo, aponta que não é raro que a satisfação sexual aumente justamente quando há maior autoconhecimento (3).
Para algumas, a maturidade pode ser o primeiro momento real de liberdade sexual. Ao longo da vida, houve pressões, maternidades nem sempre desejadas, trabalhos exaustivos, obrigações sociais, familiares ou religiosas. Agora, a redescoberta do corpo pode ocorrer sem tantas amarras. O uso de lubrificantes para aliviar o desconforto vaginal, terapias alternativas, exercícios para o assoalho pélvico e mesmo tratamentos hormonais, quando indicados, tornam o ato sexual mais confortável e prazeroso. Conhecer o próprio corpo, a própria fisiologia, é um caminho para reduzir medos e inseguranças.
Reescrevendo roteiros: o prazer além do padrão
Nos estudos sobre sexualidade sênior, a terapeuta americana Gina Ogden constatou que o sexo, na maturidade, costuma ser menos ansioso e mais focado no prazer mútuo do que na performance (4). Menos preocupação com a estética corporal, mais atenção à qualidade do toque, ao ritmo do encontro, ao prazer de uma conversa íntima antes e depois do ato. Não é mais uma corrida para “ser a melhor”, mas um mergulho no que realmente desperta desejo e alegria.
Essa perspectiva ajusta o foco: o erotismo não se limita à penetração ou às práticas tradicionais. Pode envolver massagens, sexo oral mais longo e detalhado, brinquedos eróticos, uso de tecidos sensuais, música, aromas. A maturidade liberta de certos roteiros engessados, convida a perceber que o prazer pode tomar formas variadas. E isso ganha uma dimensão extraordinária quando se reconhece que, por décadas, muitas ignoraram o próprio bem-estar sexual, deixando o desejo no fim da fila de prioridades.
Desfazendo estigmas: quem disse que o desejo acaba?
O estereótipo de que “mulher mais velha não faz sexo” é uma peça fundamental na manutenção da invisibilidade. Esse argumento, muitas vezes usado para desumanizar mulheres maduras, é mais violento ainda quando direcionado àquelas que amam outras mulheres. Como se a orientação sexual fosse um “deslize da juventude”, algo fadado ao esquecimento com a chegada dos cabelos brancos. Não é assim.
Pesquisas internacionais, como as realizadas na University of Minnesota, indicam que mulheres maduras podem manter ou até melhorar a satisfação sexual, especialmente quando o diálogo, a empatia e o respeito às individualidades estão presentes (5). Ainda que faltem estatísticas brasileiras específicas, o crescimento de grupos de apoio, coletivos e páginas online dedicadas a discutir sexualidade feminina em diferentes idades mostra que existe demanda por informação e reconhecimento.
Em um contexto marcado pela desigualdade, com pouca disponibilidade de serviços de saúde específicos e escassez de representações na mídia, essas redes informais tornam-se ainda mais importantes. Trocar experiências em fóruns virtuais ou grupos de afinidade pode ajudar a encontrar soluções práticas: desde dicas sobre produtos até indicações de profissionais de saúde sensíveis à questão.
Questões de saúde e prevenção
Com o passar do tempo, ainda é crucial não negligenciar a proteção contra Infecções Sexualmente Transmissíveis (ISTs). Mulheres que fazem sexo com mulheres também precisam considerar uso de barreiras de proteção. Camisinhas internas, luvas, lenços de látex (que podem ser improvisados com preservativos cortados) estão aí para garantir segurança. O acesso a esses materiais pelo sistema de saúde, a testagem regular, tudo isso faz parte de um cuidado abrangente. Informação é poder, e o cuidado mútuo é parte fundamental do prazer compartilhado.
Autocuidado emocional e busca de apoio profissional
Se o corpo passa por mudanças, a mente não fica atrás. A maturidade pode vir acompanhada de inseguranças, lembranças, traumas não curados. O erotismo exige mais do que fisiologia: pede presença, entrega. Por isso, não se deve hesitar em buscar terapia sexual, aconselhamento psicológico ou grupos de discussão com especialistas. Embora haja carência de profissionais preparados para lidar com sexualidade em camadas mais complexas da vida, iniciativas de formação e coletivos ligados à saúde mental têm aparecido com maior frequência.
Ninguém deve enfrentar sozinha essa jornada. Compartilhar dúvidas com outras mulheres que passaram por situações semelhantes pode ser transformador. Há quem relate que só depois dos 50 conseguiu falar abertamente do que gosta na cama, do que não gosta, do que a excita, do que lhe dá repulsa, sem medo de ser taxada de “difícil” ou “exigente”. A maturidade pode ser o momento ideal para reclamar o direito de ser ouvida no quarto, na cozinha ou onde quer que o desejo se manifeste.
Refletindo sobre o erotismo como potência
A escritora e pensadora Audre Lorde, em seu ensaio “Uses of the Erotic: The Erotic as Power” (6), redefiniu o erótico como uma força vital, criativa, que transcende o mero ato sexual. Para Lorde, o erotismo é um instrumento de empoderamento, uma fonte de energia capaz de alimentar a autoestima, a solidariedade e a capacidade de transformação social. Quando mulheres maduras abraçam esse conceito, percebem que sentir prazer não é um capricho: é um posicionamento político, um modo de afirmar que sua identidade não está suspensa pela idade.
Além disso, em um país no qual as desigualdades sociais e raciais marcam profundamente as trajetórias individuais, viver o erotismo na maturidade significa resistir a pressões históricas. É ir contra a ideia de que, após certa idade, resta apenas a resignação. É reivindicar cuidado, amor e desejo, sem precisar pedir desculpas ou justificativas.
O prazer como narrativa viva
Existem poucas referências na literatura e na mídia de mulheres maduras vivendo o sexo de forma plena. Mas isso começa a mudar. As artes, a produção cultural independente, a proliferação de coletivos feministas e espaços LGBTI+ oferecem a chance de reescrever a narrativa. Num país diverso, com tantas vozes, encontram-se cada vez mais relatos, ensaios, vídeos, poemas, fotografias que celebram corpos marcados pelo tempo e, ainda assim, ávidos de sensações.
Buscar tais referências — seja em contos, documentários, conversas anônimas em fóruns online ou rodas de conversa no bairro — ajuda a legitimar a própria experiência. Não há um único roteiro para o prazer na maturidade, mas infinitos caminhos que começam quando se aceita a própria história e o próprio corpo como território de prazer legítimo.
Conclusão: o erotismo como semente tardia (e exuberante)
Redescobrir o prazer sexual na maturidade não é um luxo reservado a poucas. É uma possibilidade concreta, ainda que envolta em desafios. Significa reposicionar-se no mundo, recusar o apagamento, abraçar a potência erótica mesmo quando o mercado, a mídia e a moral tradicional insistem em dizer que “já passou da idade”.
A verdadeira superação dos preconceitos não virá de grandes revoluções retóricas, mas de gestos íntimos, cotidianos, discretos ou escancarados, em que cada mulher se permita sentir. Quando isso acontece, o erotismo deixará de ser um segredo sussurrado entre paredes silenciosas e se tornará uma força viva, um farol brilhando no horizonte, guiando-nos pela estranha e deliciosa jornada do desejo que não se rende ao tempo.