“É Assim que Se Perde a Guerra do Tempo”: romance entre mulheres marca a mais que ótima e premiada ficção científica

Há um nível de abstração necessário para se iniciar a leitura de “É assim que se perde a guerra do tempo”, de Amal El-mohtar e Max Gladstone. Obviamente isso é requerido para qualquer obra de ficção (e algumas documentais também), então não estou prefaciando esta crítica com nenhuma novidade.

Mas faço essa observação apenas para indicar que o livro não vai te fornecer nenhuma informação “de bandeja”. Você vai capturar pedaços da construção deste universo de ficção científica conforme faz sua leitura, tal qual a enigmática personagem Rastreadora que finaliza cada capítulo.

Uma das primeiras (e poucas) informações passadas sobre o livro nos sites que o vendem é que se trata de um “romance epistolar”. Para quem não sabe, isso significa que a obra tem o formato de cartas, enviadas de um personagem a outro. As epístolas não compõem completamente o “É assim que se perde” (se me permitem a redução do longo título) – os trechos de história entre as missivas são importantes para a construção do universo que citei acima.

 

 

Não vou enganar ninguém aqui e já indico que comprei o livro porque se tratava de uma ficção científica premiada com temática de romance entre duas mulheres. A parte de ser uma obra premiada não é difícil de descobrir, mesmo antes de ler: a capa da versão brasileira, do Selo Suma (parte da editora Companhia das Letras voltada ao público geek), já indica que o título ganhou os prêmios Hugo, Nebula e Locus.

Já a parte de ser um romance entre duas mulheres confesso que te dei um pouco de spoiler aí. Obviamente não seria difícil descobrir, pois igualmente isso está indicado em vários sites e críticas sobre o livro. Mas não é algo que se imagina no começo da leitura, apesar de instantes de flerte ocorrerem em alguns momentos no início.

Não, a relação entre as duas personagens vai se construindo, junto às diversas missões que ambas devem realizar para ganhar vantagem na guerra do tempo (literalmente travada entre várias épocas diferentes), já que estão em lados opostos – “enemies to lovers”, os fãs de fanfic tremem!

Nesse sentido, interessante saber também que cada um dos dois autores escreveu como uma personagem, numa verdadeira troca de cartas. E, para mim, mais interessante ainda foi notar que o trabalho de tradução de Natalia Borges Polesso (nome conhecido na literatura nacional) adaptou todos os termos que estariam neutros em inglês (como profissões – soldiers, guardians) para suas versões femininas no nosso português. Essa escolha de tradução, apesar de retirar a neutralidade das figuras, por outro lado exalta a representatividade de ter um romance entre duas mulheres tão à frente da obra.

Algo fantástico no mundo da ficção científica é que, não apenas os seus autores costuram um mundo novo em grande parte dos casos, mas que escolhem uma história específica para ilustrar esse mundo. Explico: no universo de Star Wars, existem incontáveis histórias a serem contadas – mas George Lucas quis contar a de Luke Skywalker (ao menos, primeiramente).

O mundo construído em “É Assim que se Perde” é fantástico, mesmo que não extremamente inédito. E com isso volto ao ponto inicial dessa crítica – como os autores não dão delicadas explicações sobre este universo que construíram (ao contrário de um Tolkien da vida, por exemplo), cabe ao leitor ficar maravilhado pelo que descobre – ou se entediar.

E é bom que os autores tenham desenvolvido bem o mundo que queriam, pois a obra será adaptada para televisão – com os próprios autores como roteiristas, conforme notícia de 2019. Assim, deixo minha recomendação de leitura desta versão “inicial” da obra – se tratando de ficção científica, o que vemos nos olhos de nossa mente pode ser mais rico do que os efeitos especiais permitem, até porque esse livro não nos alimenta com informações de forma fácil.