O termo “artista” serve muito bem para Tove Jansson, a autora de “A Traidora Honrada”, considerando a multidisciplinariedade de suas produções – ela foi pintora, autora, quadrinista e dramaturga. Uma de suas características é colocar um pouco de si em cada obra sua – se é que existe um artista que não faça isso, de um jeito ou de outro.
Esta conexão autora-personagem pode ser vista em “A Traidora Honrada”, livro publicado no Brasil pelas editoras Autêntica e A Bolha. Na história, temos a justaposição entre duas mulheres de temperamentos diversos – a lupina Katri Kling e a dócil (pero no mucho) Anna Aemalin.
Sem estragar muito as surpresas de uma trama que é, na verdade, simples, Katri convive com seu irmão Mats em um vilarejo europeu gelado. Extremamente pragmática e calculista, Katri decide envolver sua vida com a de Anna – uma senhora mais velha que vive isolada dos outros moradores em sua casa em formato de coelho – para que possa de alguma forma controlar seu cotidiano e obter dinheiro para realizar o sonho do irmão de ter um barco.
Aqui começa uma forte relação com a vida pessoal de Jansson – sua produção mais notória foi a criação dos Moomins, trolls parecidos com hipopótamos que são um sucesso nos países nórdicos (e no Japão). Conhecendo a autora, difícil não fazer a relação entre a personagem Anna – que é ilustradora de livros infantis famosos – com Tove.
O caráter de Katri já é definido logo nas primeiras páginas, deixando a leitora em uma posição “confortável” de já imaginar o que vai ocorrer e qual o objetivo final da protagonista. Mas é ao apresentar Anna e esmiuçar o convívio das duas que começam as surpresas e as reflexões.
Em uma relação simultaneamente maternal, conjugal, fraternal e além de definições usuais, Katri vai deixando uma marca com sua frieza na ingênua Anna, que na primeira metade do livro se deixa levar pela honrada vizinha.
Mas é na metade seguinte que Anna também vai demonstrando características suas que desafiam a primeira percepção que todos (inclusive Katri) tem da mesma, indicando um humor arredio e revoltado quando quer. É engraçado perceber aqui que, com essas definições, Anna não destoa muito das crianças mimadas que a enviam cartas, querendo atenção da pintora dos coelhinhos que vão em cada livro. Será que Tove também se viu em conflito com a atenção que recebia por seus desenhos infantis?
As diferenças entre as duas mulheres, que possuem uma relação simbiótica, são o foco do livro tão bem escrito por Jansson. Com uma prosa elogiada até pela gigante Ursula K. Le Guin (autora de A Mão Esquerda da Escuridão), Tove mescla a narração em primeira e terceira pessoa de forma não confusa e até leve, em algo que poderia gerar estranhamento se não fosse bem-feito.
Um livro tão pragmático e perceptivo quanto Katri, “A Traidora Honrada” é uma entrada breve (com 160 páginas) pelo rico universo interno de Tove Jansson, para quem prefere leituras mais tradicionais aos mais conhecidos Moomins.
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