or muitos anos, o debate sobre sexo seguro esteve fortemente atrelado à heteronormatividade e aos riscos de gravidez ou infecções em relações heterossexuais e entre homens cisgêneros. No entanto, quando olhamos para a realidade de mulheres lésbicas, bissexuais e aquelas que vivenciam relações não monogâmicas, percebemos que a conversa sobre proteção e autocuidado ainda é subestimada, se não completamente negligenciada. Essa lacuna revela não apenas um viés heteronormativo, mas também uma falta de consideração sobre as complexidades que envolvem as relações entre mulheres e as dinâmicas da não monogamia.
Desconstruindo Mitos: Mulheres Que Se Relacionam com Mulheres Estão Seguras?
A crença de que mulheres lésbicas ou que se relacionam exclusivamente com outras mulheres estão automaticamente protegidas contra infecções sexualmente transmissíveis (ISTs) é perigosa e falsa. Estudos demonstram que o risco de transmissão de ISTs, como o HPV (papilomavírus humano), herpes genital, gonorreia e clamídia, pode ser significativo em práticas como o compartilhamento de brinquedos sexuais, sexo oral e contato pele a pele.
De acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), o HPV, por exemplo, pode ser transmitido através de contato direto, mesmo na ausência de penetração. Em relações lésbicas, práticas como a fricção vulva-vulva, uso de dedos ou brinquedos sem higienização adequada são veículos potenciais para a transmissão. Além disso, muitas mulheres não estão cientes da necessidade de exames regulares, contribuindo para diagnósticos tardios e maior risco de complicações.
Não Monogamia e o Cuidado Coletivo
Nas dinâmicas não monogâmicas, o sexo seguro não é apenas uma questão individual, mas uma responsabilidade compartilhada entre todas as partes envolvidas. A ética relacional, tão defendida por quem pratica não monogamia, também deve incluir a responsabilidade sexual. Isso significa comunicação aberta sobre status de saúde, realização de exames regulares e o uso de barreiras de proteção, como luvas ou preservativos para brinquedos sexuais.
No Brasil, onde a desigualdade de acesso à saúde é uma realidade cruel, mulheres negras e de classe C enfrentam desafios ainda maiores para acessar cuidados preventivos. O Sistema Único de Saúde (SUS) oferece testes gratuitos para ISTs e vacinas contra o HPV, mas a falta de informação e o estigma em torno da sexualidade lésbica e não monogâmica muitas vezes afastam essas mulheres do cuidado necessário.
Feminilidade, Invisibilidade e o Sistema de Saúde
A invisibilidade das relações entre mulheres nos sistemas de saúde é outro entrave. Muitas mulheres lésbicas e bissexuais relatam que seus médicos presumem automaticamente que elas têm parceiros homens e, portanto, não oferecem informações ou exames apropriados. Um estudo da Faculdade de Medicina da USP revelou que 65% das mulheres lésbicas e bissexuais entrevistadas nunca haviam recebido orientações específicas sobre sexo seguro.
Essa negligência reflete um apagamento histórico das vivências lésbicas e uma visão estreita de saúde sexual. Aqui, questões de raça e classe se tornam ainda mais prementes. Uma mulher negra de periferia, por exemplo, não apenas enfrenta barreiras econômicas para acessar o sistema de saúde, mas também lida com o racismo estrutural e o preconceito contra sua orientação sexual.
Derrubando Tabus: Como Praticar Sexo Seguro
Romper o silêncio sobre práticas seguras em relações lésbicas e não monogâmicas começa com a disseminação de informações claras e acessíveis. Aqui estão algumas práticas recomendadas:
- Higienização de brinquedos sexuais: Brinquedos devem ser limpos com sabão antibacteriano ou soluções específicas antes e após o uso. O uso de preservativos em brinquedos compartilhados também é fundamental.
- Uso de barreiras dentais: Embora pouco conhecidas no Brasil, as barreiras dentais (dental dams) são uma forma eficaz de proteção durante o sexo oral.
- Luvas descartáveis: Nas práticas que envolvem penetração, o uso de luvas pode evitar arranhões e a transmissão de bactérias ou vírus.
- Vacinação: Vacinas contra HPV e hepatites A e B estão disponíveis gratuitamente no SUS.
- Diálogo aberto: Em dinâmicas não monogâmicas, compartilhar exames recentes e discutir práticas sexuais de forma aberta é um sinal de cuidado mútuo.
O Papel da Comunidade em Promover Informação
A desinformação não é combatida apenas com médicos, mas também com iniciativas comunitárias que levam em conta as realidades de raça, classe e gênero. Coletivos LGBTQIA+, como a Liga Brasileira de Lésbicas, têm desempenhado um papel crucial ao oferecer rodas de conversa, distribuir materiais educativos e pressionar por políticas públicas que incluam mulheres que se relacionam com mulheres.
Em um país onde a educação sexual é sabotada por agendas conservadoras, é vital que a informação circule entre nós. Redes sociais, podcasts e blogs voltados para mulheres LGBTQIA+ têm sido espaços de resistência e troca de experiências que podem salvar vidas.
Conclusão: Sexo Seguro é Autocuidado e Revolução
Adotar práticas de sexo seguro em relações lésbicas e não monogâmicas é um ato de autocuidado, mas também de resistência contra o apagamento e a negligência que enfrentamos como mulheres que fogem das normas estabelecidas.
Sexo seguro não é só sobre evitar doenças. É sobre reivindicar nossa saúde, nossos corpos e nossas relações como territórios de cuidado e prazer. É um lembrete de que, em um mundo que frequentemente nos ignora, nossa existência é política – e nosso bem-estar, inegociável.
E, afinal, qual revolução não começa pelo corpo?