O amor, ah, o amor. Esse sentimento tão cantado, rezado e desdobrado em mil enredos por aí. Quando a gente fala de amor não monogâmico, no entanto, parece entrar noutro terreno: quase uma constelação distante, ainda mais se quem ama e deseja sai dos padrões hétero, cis e brancos. Para nós, mulheres lésbicas e bissexuais, muitas vezes negras, de classes não abastadas, essa experiência não monogâmica soa como um redemoinho de possibilidades, tensões, tabus e libertações. E dentro desse redemoinho, comunicar nossas necessidades de forma clara e honesta é um desafio digno de muitas noites de sono perdido.
Mas não precisa ser assim, pelo menos não o tempo todo. Há caminhos, apontamentos de quem já caminhou por essa estrada, reflexões de pesquisadoras, de terapeutas, de ativistas que nos ajudam a entender que a comunicação não é um mero apêndice do relacionamento. É a argamassa que une tijolos tão distintos quanto a afetividade, o tesão, a rotina, a responsabilidade emocional e os limites individuais.
Não é novidade que a não monogamia consensual – seja poliamor, relacionamento aberto, anarquia relacional ou qualquer configuração que rompa o modelo tradicional – se tornou mais visível nas últimas décadas. Pesquisas internacionais, como as conduzidas pela Dra. Elisabeth Sheff (autora de “The Polyamorists Next Door” – 2014), apontam que cada vez mais pessoas têm escolhido se afastar do modelo mononormativo (1). No Brasil, embora careçamos de estatísticas oficiais do IBGE sobre não monogamia, há uma crescente discussão nas redes sociais, em coletivos feministas, LGBTI+ e negros sobre a legitimidade desses arranjos afetivos. O problema é que nós ainda caminhamos sobre um tapete cheio de nós, refletindo preconceitos de raça, classe e gênero.
A encruzilhada de raça, gênero e classe na comunicação não monogâmica
Quando falamos em “comunicar necessidades” em dinâmicas não monogâmicas, não podemos ignorar o contexto em que essa comunicação acontece. Vivemos em um país marcado pela desigualdade social, pelo racismo estrutural e pela LGBTfobia. Segundo dados da Aliança Nacional LGBTI+ (2), a discriminação contra pessoas LGBT+, especialmente mulheres negras, é persistente, limitando acesso a emprego, saúde de qualidade e espaços seguros de sociabilidade. Esse contexto pesa sobre nossos ombros quando tentamos estabelecer diálogos sinceros com parceiras.
Se uma mulher negra lésbica ou bi, moradora de um bairro periférico, com acesso limitado a terapia ou grupos de apoio, se vê envolvida em uma dinâmica não monogâmica com uma parceira de classe média ou branca, as relações de poder e privilégio podem silenciar necessidades. Como comunicar com clareza o que você sente quando o mundo sempre lhe disse para ser resiliente, engolir sapos, ficar em segundo plano? Como expressar seu desejo por mais atenção, mais cuidado, quando a sociedade te condiciona a assumir o papel da “forte” que não demanda demais? Esse é o subtexto não dito que permeia muitas relações não monogâmicas nas quais raça e classe entram em cena sem pedir licença.
Reconhecer essa dimensão é o primeiro passo. A comunicação não acontece no vácuo. Ela está imersa num caldo cultural e político. Compreender que não somos todas iguais, que falar “quero mais tempo de qualidade com você” pode ter implicações diferentes para uma mulher negra trabalhadora que chega em casa exausta, é começar a desfazer a densa trama de opressões que dificultam um diálogo honesto.
Ferramentas para comunicar necessidades: referências e teorias
Dossie Easton e Janet W. Hardy, no clássico “The Ethical Slut” (1997, edições posteriores), falam sobre honestidade e comunicação aberta como pilares dos relacionamentos não monogâmicos éticos (3). A lógica é simples na teoria: você precisa dizer o que sente, ouvir o que a outra pessoa sente e encontrar um denominador comum entre os desejos e limites de cada umx. Mas como fazer isso na prática, especialmente quando o fantasma da rejeição ou do ciúme estrutural nos ronda?
Franklin Veaux e Eve Rickert, em “More Than Two: A Practical Guide to Ethical Polyamory” (2014), aprofundam a ideia de que a comunicação não é apenas trocar informações, mas escutar com empatia, validar emoções, reconhecer privilégios e vulnerabilidades (4). É perceber que comunicar necessidades não é um ato egoísta; é um ato de cuidado consigo mesma e com as outras.
Algumas estratégias sugeridas por terapeutas e educadoras em sexualidade, como Dedeker Winston, que discute não monogamia no podcast “Multiamory” (5), incluem marcar momentos específicos para conversar sobre a relação, garantir um ambiente neutro e seguro, fazer check-ins regulares e usar ferramentas como listas de necessidades escritas, para ajudar a organizar o que sentimos.
Porém, tudo isso só funciona se levarmos em conta o contexto brasileiro, em que, muitas vezes, a falta de recursos, o machismo, a lesbofobia e o racismo institucional dificultam até mesmo a busca por ajuda profissional. Não é todo mundo que pode pagar uma terapia de casal com uma terapeuta especializada em não monogamia. Não é toda mulher negra que se sente representada no discurso de autoras e autores estrangeiros, muitas vezes ignorando o peso da desigualdade racial.
Interseccionalidade: um caminho para o diálogo
A interseccionalidade, conceito trazido pela jurista Kimberlé Crenshaw e desenvolvido por feministas negras como bell hooks, nos convida a entender que raça, gênero e classe não podem ser separados (6). Aplicada às dinâmicas não monogâmicas, essa perspectiva nos lembra que a comunicação de necessidades não é um ato isolado. É uma dança com múltiplas camadas sociais. Ao reconhecer isso, podemos criar espaços mais acolhedores de diálogo.
Imagine uma roda de conversa de mulheres negras LBTQ+ sobre não monogamia, algo que começa a emergir em grupos virtuais brasileiros, como coletivos no Facebook e Instagram dedicados ao tema. Nesses espaços, a troca de experiências permite que surjam estratégias de comunicação adaptadas às realidades locais, ao vocabulário e às referências culturais. Saber que outras mulheres negras enfrentam o mesmo dilema – como dizer à parceira que você precisa de mais cuidado emocional sem ser taxada de “carente” – já é meio caminho andado.
Comunicação não violenta, mas com contexto
Muitas das ferramentas de comunicação surgem do conceito de comunicação não violenta (CNV), criado por Marshall B. Rosenberg (7). A CNV propõe expressar sentimentos e necessidades genuínas sem julgar ou culpar. Contudo, não podemos esquecer que essa abordagem nasceu em contextos específicos e muitas vezes não aborda explicitamente as desigualdades raciais e de classe. Ainda assim, seus princípios podem ser adaptados.
Por exemplo, ao invés de dizer: “Você nunca me dá atenção, você só pensa nas outras parceiras”, poderíamos tentar: “Eu me sinto insegura e carente quando temos pouco tempo de qualidade. Preciso de um momento só nosso para me sentir valorizada.” A diferença está em falar do sentimento e da necessidade, não no ataque. Mas se a interlocutora é alguém que ignora questões raciais ou desdenha do fato de você ter uma rotina mais pesada de trabalho, é preciso também trazer esse elemento à conversa. Explicitar: “Quando você minimiza minha exaustão ou diz que estou exagerando, sinto-me desrespeitada, e isso reforça uma dinâmica de poder que ignora meu contexto.”
Comunicar necessidades não é só dizer o que se quer, mas também apontar o que nos fere, o que nos submete a lugares de subalternidade histórica. É a CNV com adendo crítico: reconhecer as opressões que tornam a conversa desigual.
Negociação de limites e acordos claros
Parte importante da comunicação em relações não monogâmicas é a negociação de limites. Isso inclui frequência de encontros com outras parceiras, definição de práticas sexuais, hierarquia ou não entre relacionamentos (no caso do poliamor hierárquico x anárquico), além da própria questão do tempo: quanto tempo você precisa da outra para se sentir segura? Qual a frequência de conversas sobre os rumos do relacionamento?
Segundo pesquisa publicada no Journal of Sex & Marital Therapy (Rubel & Burleigh, 2020) sobre a satisfação em relações não monogâmicas consensuais, a clareza de acordos e a capacidade de renegociá-los ao longo do tempo estão associadas a maior estabilidade emocional (8). Isso reforça a importância de comunicar necessidades não como algo pontual, mas como um processo contínuo.
É também importante pensar em ferramentas práticas. Algumas pessoas usam planilhas, cadernos, aplicativos de calendário compartilhados. Pode parecer “burocratizar” o afeto, mas para quem vive na correria, equilibrando três trampos, cuidando da casa e, quem sabe, filhos, ter acordos escritos ajuda a não deixar tudo se perder no mar de suposições. Clareza reduz o risco de ressentimentos silenciosos.
Apoio na comunidade, referências nacionais
No Brasil, não temos um grande conjunto de obras clássicas sobre não monogamia adaptadas à nossa realidade social, mas há esforços importantes. Coletivos feministas e LGBTI+, tais como a ABRAFH – Associação Brasileira de Famílias Homotransafetivas (9), e rodas de conversa organizadas por grupos locais, ajudam a criar conhecimento situado. Além disso, pesquisadoras brasileiras começam a explorar o tema: artigos publicados em revistas acadêmicas, como a Gênero e Número, discutem arranjos afetivos não convencionais e sua relação com questões sociais.
Buscar informações em grupos virtuais – há comunidades no Facebook como “Poliamor Brasil” – pode fornecer um espaço de troca de ideias e experiências, onde pessoas negras e periféricas também se fazem presentes, contribuindo com visões mais pluralistas. O espaço digital pode ser um campo fértil para descolonizar a discussão, trazendo a especificidade do contexto brasileiro, com suas contradições e potências.
Colocando-se no centro da própria narrativa
Comunicar necessidades em dinâmicas não monogâmicas exige não apenas técnica, mas coragem. Coragem de admitir que somos vulneráveis, que não estamos imunes ao ciúme, ao medo do abandono, à insegurança econômica, ao racismo que nos espreita na esquina da padaria ou do fórum de discussão online. É reconhecer que falar do que a gente precisa não é pedir demais, não é fraqueza, não é egoísmo. É, antes, um ato de autoafirmação numa sociedade que desvaloriza o corpo e a voz de mulheres negras LBTQ+.
Ao aprender a formular nossas necessidades, assumimos a caneta que escreve nossa história. Dizemos às parceiras: “Eu existo em minha totalidade, com minha herança cultural, minha cor, meu sotaque, minha classe social, minha sexualidade diversa. Você me vê? Você me escuta?” E se a resposta é insatisfatória, é também um sinal de que a comunicação foi ao menos clara. Sabemos onde estamos pisando. Não monogamia sem comunicação honesta é só um jogo de adivinhações e dores não ditas.
Conclusão
Comunicar necessidades em dinâmicas não monogâmicas não é um luxo reservado a quem tem dinheiro para terapia, tempo livre e o privilégio de não lidar com racismo, lesbofobia ou precariedade financeira. É uma habilidade que todas nós, mulheres lésbicas, bissexuais, negras, muitas vezes da classe C, podemos desenvolver. Exige trabalho emocional, empatia, vontade de ouvir e falar, e o reconhecimento de que nossos desejos não estão separados do contexto histórico em que vivemos.
Ao insistir na clareza, na honestidade e na interseccionalidade, construímos relações não monogâmicas mais justas, mais gentis e mais conscientes. É um processo lento, com tropeços, mas que pode render frutos transformadores. Afinal, o amor – mesmo em sua versão mais ampla e plural – não precisa ser um campo de batalha silencioso. Pode ser um espaço de diálogo onde nossas vozes ecoam fortes e inconfundíveis.
Referências:
(1) Sheff, Elisabeth. “The Polyamorists Next Door: Inside Multiple-Partner Relationships and Families.” Rowman & Littlefield, 2014.
(2) Aliança Nacional LGBTI+. Disponível em: http://www.aliancalgbti.org.br/
(3) Easton, Dossie; Hardy, Janet W. “The Ethical Slut”. Ten Speed Press, 1997 (edições posteriores revisadas).
(4) Veaux, Franklin; Rickert, Eve. “More Than Two: A Practical Guide to Ethical Polyamory.” Thorntree Press, 2014.
(5) “Multiamory” Podcast. Disponível em: https://www.multiamory.com/
(6) hooks, bell. “All About Love: New Visions.” William Morrow, 2000; e textos de Kimberlé Crenshaw sobre interseccionalidade.
(7) Rosenberg, Marshall B. “Nonviolent Communication: A Language of Life.” PuddleDancer Press, várias edições.
(8) Rubel, A.N., & Burleigh, T.L. (2020). “Counting the Many: Methodological Considerations for Research on Consensually Non-Monogamous Relationships.” Journal of Sex & Marital Therapy, 46(1).
(9) ABRAFH – Associação Brasileira de Famílias Homotransafetivas. Disponível em: http://abrafh.org.br/
Estas referências oferecem perspectivas sobre não monogamia, comunicação, interseccionalidade e parentalidades diversas. Embora algumas sejam de contextos internacionais, podem ser adaptadas e compreendidas à luz da realidade brasileira.